Monólogo da alma





O meu corpo e a minha alma tiveram sua relação estremecida nos últimos dias. Me dei conta disto no momento em que  vi um corredor passar por mim na rua e senti aquela inveja incontrolável por não poder vestir o short, calçar os tênis e fazer o mesmo. Minha alma gritava “corra”, mas meu corpo respondia “não posso”.
Estive doente. E nestes poucos dias, que pareceram meses, senti  a parte intocável de mim - aquela que ninguém vê, pouquíssimos percebem, a maioria desacredita,  chamam de alma e eu chamo de eu – impotente dentro de um corpo lesado. 
Um leão enjaulado, um pássaro engaiolado, um gato preso pela corrente.Qualquer uma destas cenas caberia perfeitamente para  ilustrar o sentimento de impotência que me acometeu. Meu corpo era a jaula, a gaiola, a corrente, prendendo a mim.
Aproveitei o ensejo, porque aprendi que os piores momentos podem conter as melhores oportunidades, e encarei a minha parte sã. Aquela que fica além do corpo ou dentro dele, se preferirem.
Olhei minha alma com a calma dos seres incapazes de correr. Com todo o tempo que não teria se pudesse ter saído correndo atrás daquele atleta na rua. E sou capaz de jurar que ela sorria para mim, aliás, tenho quase certeza de que ela ria de mim. Diretamente do meu corpo prostrado pela dor e enebriado pelo antibiótico eu vi o sarcasmo da minha  alma, enquanto apontava com seu dedo invisível e falava com sua voz inaudível:  “Eu e você somos uma só, e não estamos doente. Ele está, mas ele é apenas o corpo que nos guarda.”
Eu sei que os componentes químicos contidos nos medicamentos são capazes de alterar o nosso estado de consciência, mas eu não estava delirando, pelo contrário,  fiquei consciente de mim exatamente no período em que o corpo que me carrega precisou parar.
Incrível como nos confundimos! Ou melhor, como fundimos corpo e alma, corpo e nós e acabamos sintetizando tudo fisicamente. Foi preciso a minha parte física, que há muito não adoecia, enfraquecer, para que o meu eu, a minha alma, o que eu sou verdadeiramente, despontasse.
É um tanto quanto estranho fazer esta dissociação,  talvez por isto evitemos fazê-la por boa parte da vida. É tão mais normal e, consequentemente, fácil lidarmos com o nosso eu físico. As nossas imperfeições estéticas, nossos defeitos congênitos, nossas inadequações aparentes, tiramos de letra. E o que não tiramos, a ciência e os procedimentos cirúrgicos ajudam a eliminar.
Agora, lidar com a alma -  esta voz que fala em nossos ouvidos e que sabemos não ser uma gravação implantada no cérebro, através de um chip que contém gravado todos os arquivos da nossa existência desde o instante da fecundação -  não é tão fácil!
Fácil  é dizer que tenho cabelos e olhos de  tais cores;  visto tamanho X e calço tamanho Y;  gosto de comer isto e não gosto daquilo;  já fiz tal coisa, exerço outra, mas ainda quero fazer algo bem diferente.
Difícil é entender o que não vejo;  satisfazer o que sinto;  realizar o que desejo ;  explicar o que ninguém vê;  ser o que realmente sou e chamam alma.
Naquele instante luminoso, em que a minha alma brigava com o meu corpo para calçar os tênis e sair em disparada, tive um sobressalto. Um temor imenso percorreu meu corpo já febril e congelou a corredora inquieta:  E se, ao chegar a morte para levar o meu corpo, a minha alma quiser correr na rua? Se o desejo de vestir o short e calçar os tênis não tiver morrido? Se eu ainda estiver viva? Quem me convencerá a morrer? Quem me tomará pelas mãos e me levará a correr em outra pista que desconheço? 


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Seres Invernais




Tenho os meus motivos para não gostar do inverno. Por exemplo, estar neste exato momento com quilos de cobertores sobre as minhas pernas, enquanto as minhas mãos congeladas dançam sobre o teclado tentando, em vão, se aquecer. 
Ter de sair, corajosamente, debaixo das cobertas diretamente para o frio das sete da manhã e vestir camadas e mais camadas de tecido, até o meu corpo virar um caroço imóvel, mas quente. Ver minhas mãos duras e  murchas, após lavar a pilha de louça com a água que sai, naturalmente, refrigerada da torneira e ter as mangas do casaco de lã encharcadas. Ter de tomar banho em água escaldante e depois tiritar de frio ao me secar no meu  banheiro que parece estar localizado em algum bairro do Polo Norte. Deslizar o creme frio sobre minhas canelas ressecadas e esbranquiçadas e depois vestir pijama, roupão, polaina, pantufa e me sentir o próprio palhaço Bozo, só que na frente da TV.
Tenho atenuantes físicos que embasam a minha ojeriza pelo inverno: pés e bumbum gelados que me tornam tão irritada quanto em surto de TPM; lábios craquelados;  nariz com goteira; amígdalas em constante manifestação conflituosa.
Enfim, preencheria facilmente várias folhas A4 com justificativas que me fazem desejar ardentemente regressar ao outono, mas de nada adiantaria.Para chegar aos jardins floridos da primavera é preciso passar pelos dias cinzas do inverno.
Gosto de brincar, assim, de coisas e vida, pessoas e estações  e comparo este período gelado,  o qual sou obrigada a transcorrer, com as pessoas, igualmente, escuras e frias com as quais preciso conviver. 
Confesso que preferiria comandar esta brincadeira de gente. Gostaria de, com dedo em riste, apontar para alguns narizes imponentes e dizer em alto,forte, mas em educado tom: “ Você tá fora! Não brinca mais comigo”.
Lógico que já fiz isto, mas não antes de ter sentido todos os efeitos colaterais da frieza impiedosa  que emana do coração de alguns seres que se dizem humanos. Aliás, não existe nada que congele mais os sentimentos até quebrá-los irreparavelmente, do que atitudes humanas de quem consegue ser mais árido do que o próprio inverno.
De tanto brincar de coisas e pessoas, estações e vida, descobri que o mundo está cheio de gente congelante, as quais é preciso ter muita coragem para encarar, seja às sete da manhã; seja ao meio dia. Pouco importa em que altura esteja o sol, elas simplesmente esfriarão até a última fagulha de calor que existe em você. Pessoas que com a frieza de suas palavras conseguem fazer  tremer embaixo de um sol de quarenta graus.
Existem pessoas, das quais se precisa proteger, que tentarão de todas as formas transformar você num caroço imóvel, embora quente. Pessoas que, pela insensibilidade, farão você murchar e se sentir o próprio palhaço Bozo na frente do espelho.
Tenho atenuantes físicos que justificam meu pavor por estes seres invernais: pés, bumbum e todo o resto do corpo em que meu sangue passeia, congelados; lábios mordidos; nariz arfante; amígdalas inchadas pela  vontade  de mandar o tipinho gélido  para o quinto dos infernos, que é para derreter de vez.
Escreveria um livro inteiro com motivos que me fazem querer desviar o meu caminho das pessoas escuras e frias, mas de nada adiantaria. Para colher a flor no alto da montanha é preciso galgar as pedras que ficam embaixo.
Infeliz ou felizmente, como as estações, existem pessoas que transformam coisas em nossas vidas  e outras fazem das nossas vidas uma coisa. Cabe a nós conseguir passar por  todas elas sem perder a sensibilidade de ser feliz na primavera.


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