Embriaguez




Durante algum tempo acompanhei, através da internet, o caso de amor de um escritor gaúcho que muito admiro.  Chamo caso, por achar curiosa a forma como, sem reservas, ele expunha o amor por sua mulher em seus escritos; ora em forma de crônica, ora em forma de poesia; ora em escancarada declaração de amor em outdoor.
Admirava-me todos os dias com cada leitura emocionante de seus rompantes explosivos de amor. Paixão desenfreada, arrebatada, sem rodeios, nem cortinas. Amor na calçada para quem quisesse ver e ler, para quem  suspirasse e desejasse ter um igual. Só poderia ser coisa de artista.
Mas quem não sonha com um amor assim, numa época marcada por relacionamentos digitais, impessoais, furtivos, escondidos, escamoteados, confusos, bandidos, culpados? Quem  não deseja ser amado aos quatro ventos e a toda velocidade? Que mulher não deseja ser declarada a musa de alguém pelas ruas da cidade? Eu, certamente, sim.
Por conta disto, persegui  a paixão do admirável poeta como quem persegue o amor até os vãos escuros da rua pecadora das meretrizes, só para se certificar que ele sobreviveu à volúpia do prazer casual.
Senti-me cúmplice a cada gota reveladora daquela embriaguez, embriagando me, igualmente, com alto teor sentimental de suas palavras. Regojizei-me vendo  um coração masculino pulsar no ritmo descompassado, compulsivo e louco, tão próprio das fêmeas. Torci na platéia muda, mas entusiasta, para que houvesse o final feliz para aquela dança, e que não se transformasse  em jogo o que nasceu romance.
Porém, dias atrás, li um pedido desesperado do escritor apaixonado  para que sua amada voltasse. Confusa, imaginei que ela estivesse viajando e, à mercê da distância, desesperada de saudade também.
Mas, à medida em que os dias foram passando, os pedidos de volta foram virando súplica. Até que, sem pudor nem constrangimento, o poeta expurgou toda a sua dor digitalmente. Para que todos lessem e se compadecessem  Para que eu lesse, mas não compreendesse. Chorou, via internet, a dor da perda da musa amada. Ela o deixara.
Num impulso de curiosidade tentei encontrar pistas que indicassem o fim. Quis achar nas últimas pegadas o amor afundando. Desejei descobrir o engano, a fraqueza assassina dos amores fortes. Pensei ser mais uma daquelas brincadeiras do tempo, que muda tudo de lugar e faz sofrer, mas depois permite que tudo volte a ser como era.
Mas não. Não adiantava eu expirar a esperança boca a boca no amante moribundo,  tampouco soquear-lhe o peito até despertar o coração. O amor havia morrido, e a ele só restava sepultá-lo sob a lápide com a inscrição: “Mais um caso sem solução”.
Depois de dias e dias de admiração, de ter me sentido tão intensa com a sua tranquilidade em assumir-se apaixonado,  de me considerar tão normal lendo as suas loucuras, de ficar extasiada com o amor que era dela e não meu... precisava enterrar minha perda também.  Parei de acompanhar o diário digital do artista.
Numa mistura de culposidade e covardia deixei-me levar pela dor que não era minha. Encontro-me embriagada. Sem equilíbrio  nem entusiasmo, de acreditar no final feliz para estas danças que acabam transformando em jogo o romance, ergo um brinde póstumo:
Tim-tim, Carpinejar! Ao amor falsificado! E que Deus nos cure das ressacas.

  • Digg
  • Del.icio.us
  • StumbleUpon
  • Reddit
  • RSS

Presente em mim



Sempre que o dia dos pais se aproxima penso não haver mais nada no que me inspirar, já que o meu pai partiu há muito tempo. E que,talvez, devesse apenas seguir a tradição de visitá-lo em seu jazigo vazio e frio para enchê-lo de flores perfumadas, coloridas e sem sentido.
Não lembro de meu pai gostar muito de flores. Ele gostava de bichos. Então, quem sabe devesse ornar sua sepultura com pássaros ou, ainda, colocar um cachorro de guarda, pois creio que esta seria a verdadeira forma de deixá-lo feliz.
Como isto não só não seria possível, como me faria extrapolar a escala da loucura permitida, me abstenho da visita compulsória ao mausoléu da família no meu domingo sem pai. Não antes de tentar convencer , pacientemente, a minha mãe de que ele está em qualquer outro lugar menos lá, no endereço fixo daquele condomínio fúnebre.
“Meu pai está dentro de mim”. Não é somente a ela que convenço.  A prova não está na inspiração que acabei tendo e que é apenas mais uma, das tantas que ele me presenteou. A prova sou eu. A composição de dois seres que continuarão vivos enquanto eu viver.
Admito que nunca havia pensado desta forma.  A ignorância ou a insensibilidade me faziam achar que aquele espermatozoide  que se uniu ao óvulo para me gerar, seria mero agente da concepção humana, neste caso específico, de mim. A pretensão me fez crer que o meu velho,  que partiu de cabelos brancos a mando de um coração cansado, não habitaria o condomínio sem vida e nem outro lugar qualquer deste plano terrestre. Que, simplesmente, evaporaria. Cheguei, até, induzindo a imaginação, visualizá-lo sentado em um banco embaçado de um jardim fluídico de outro plano, que reluto em chamar de céu, mas que sugere  algum sentido aos desaparecimentos instantâneos e dolorosos...para quem fica.
Descobrir meu pai vivendo em mim é algo que ultrapassa qualquer improbabilidade factual  e que, contrariando os princípios da vaidade humana,  não sinto a menor necessidade de provar.
Poderia insistir na herança genética que ele depositou em mim e acho que, desta maneira,  conseguiria tornar verossímil minha constatação. Poderia escrever um conto no qual relato a companhia de um anjo e que, numa noite de insônia, um par de olhos brilhando próximos aos meus  me fazem crer que o anjo era o meu pai. Ninguém acreditaria, pois contos não são feitos para crer. Tampouco alguém  descobriria o fato de eu ter fantasiado a verdade num conto de mentira.
Ontem, por caso, se fosse crer que o acaso existe,  abri um livro em que alguém perguntava com que os moradores do céu sentiam-se felizes ao  lembrarem da Terra. Sem precisar forçar a imaginação ouvi meu pai dizendo: “Não são as flores que me fazem feliz.”
E, desta forma, ele me inspirou mais uma crônica, das muitas que ainda lhe escreverei,  e  que é a verdadeira forma que tenho  de alegrá-lo, já que não posso enfeitar com pássaros, nem colocar um cachorro na porta de onde ele nunca esteve, pois vive dentro de mim.

  • Digg
  • Del.icio.us
  • StumbleUpon
  • Reddit
  • RSS