Dia desses, meu filho chamou atenção sobre algumas ranhuras na
madeira da mesa da copa. Segundo ele a mesa estava feia e precisando de
reforma.
Eu estava lavando louça e não me dei o trabalho de parar para avaliar o tamanho
do estrago. Tinha gravado na mente cada uma das marcas que ele se referia.
Poderia contar a história de cada um delas. Como foi feita, por qual objeto, em
que momento, se era noite ou dia. Com exceção das que se sucederam sem a minha
presença. Os arranhões traquinas, feitos por mãozinhas descuidadas durante os
trabalhos escolares ou no lanche com a galerinha da escola.
Ao pensar na reforma sugerida percebi que a mesa da copa não seria a mesma sem
estas marcas. Lixá-la apagaria cada um
destes momentos. O verniz novo soterraria aquelas lembranças.
— Gosto da mesa assim, cheia de manchas e fissuras. Finalmente respondi.
Ele resmungou algumas palavras em defesa à estética do móvel, e outras
condenado a loucura de sua mãe. Achei que era hora de uma conversa séria.
Não gosto de móveis lineares, impecavelmente brilhantes. Acho triste e
impessoal os ambientes feitos sob medida, ocupando todas as paredes sem deixar
espaço para um armário antigo, uma relíquia de família. Não vejo graça nas
casas completamente decoradas por arquitetos que nunca morarão nela. Gosto do
improviso. Da mistura de cores. Da diferença de estilos.
Admito que não só já incorporei este padrão, como muito me estressei com copos
de suco sobre o aparador da sala. Com xícaras de café sobre o braço do sofá. O
furinho sem quadro, na parede. A mancha imperceptível da erva mate, no
tapete. O amassado da geladeira feito no
dia da mudança. As manchas ao lado da cama, feitas por pés jogadores de
videogame. A persiana cansada de tanto abrir e fechar.
Claro que já tive vontade de transformar minha casa num modelo de revista. Impecavelmente linda, limpa e organizada,
como na hora que bateram a foto. Mas não funciona. A menos que você esteja
pensando em enlouquecer dia a dia.
Estamos falando de gente normal. De mim de você. De seres que não existem em
páginas de revistas ou cenários de novela. Estamos falando de gente que come,
bebe, dorme, trabalha se diverte e suja! Arranha, quebra, entorta! Gente que
vive.
Nenhum ambiente retrata melhor a história de vida de alguém do que as casas
simples. Nunca esquecerei as casas das minhas duas avós. Paredes de madeiras.
Assoalhos lustrosos. Tapetes de crochê. Panelas areadas que serviriam
facilmente de espelhos. Fogão a lenha. Xícaras lascadas de tanto servir café de
bule. Cortininhas de tecidos vaporosos. Toalhinhas sobre os móveis. Novelo de
lã espetado com agulhas de tricô, esquecidos sobre o sofá. Música saindo do
radinho de pilha. Vida transbordando em cada cômodo.
Gostaria que a minha casa fosse lembrada desse jeito. Que cada cantinho remetesse
a um momento vivido. Que as alegrias e, até, as tristezas compusessem a
decoração e construíssem a nossa história. E depois que muitos anos tivessem se
passado, como num livro, pudéssemos relê-la página por página.
Na casa da minha mãe havia um banheiro com azulejos de flores roxas e a louça
sanitária era do mesmo tom, para combinar. Eu achava aquilo tão cafona! Queria
que ela o reformasse e tornasse tudo branco. Que bom que ela nunca me
ouviu. Das tantas saudades que sinto
dela, a do seu banheiro roxo é a mais perfumada.
Já faz quase um ano que a ela partiu. Voltar “lá em casa” ainda é muito
difícil. Cada enfeite que a vi comprar, cada móvel, tapete, louça... é um
pedaço da minha mãe. São trechos da história que ela escreveu, da qual fiz
parte tão intensamente, a qual me falta tão dolorosamente. Como de praxe, a casa será vendida.
Certamente demolida, mas nossa história nunca morrerá.
E foi assim, que não só meu filho passou a admirar nossa mesa arranhada, como
fez um pedido:
— Mãe escreve sobre isso.
Desta vez eu o atendi e aqui está, mais um trecho da minha história. Torço
muito para que você também arranhe, quer dizer, escreva a sua história de forma
inesquecível.