Cartão de amor

 
Remexendo no fundo do guarda-roupa encontrei uma caixa antiga - que ganhei de presente há muito tempo num dos meus aniversários de guria- a qual elegi para ser a guardiã dos cartões românticos que fui recebendo ao longo da vida.
Ao abrir um e outro, eu li o amor. Na maioria deles um amor forte e inabalável se declarava no papel por letras distintas, me fazendo relembrar as emoções sentidas em cada um daqueles períodos vividos. Mas não pude mais senti-las. Ainda que se mantivessem em perfeito estado de conservação e que tivessem velado o amor de cada época, aqueles cartões bonitos não foram suficientes para mantê-lo vivo. Então, lembrei-me da minha mãe.
Cresci ouvindo-a dizer que amor, de fato, não existe. Custei a entender que o tempo havia conferido a ela o conhecimento prático sobre as emoções que, infelizmente, na maioria das vezes, não são tão poéticas quanto sugerem ser.
Depois de anos de casamento, cinco filhos e serviços domésticos gratuitos, a mulher que me gerou, descobriu que amar não é um verbo intransitivo a ser conjugado por toda vida, e achou por bem avisar a filha, antes que ela se surpreendesse lá fora.
Não precisaria nem dizer que - como todo filho que preza pelas próprias cabeçadas - não dei a devida importância às dicas de mamãe. Aliás, sequer perdi tempo me aprofundando no significado daquela frase que, num primeiro momento, pareceu-me superficialmente fria.
Amor não existe? Nem a pessoa que me pôs no mundo me faria crer num absurdo deste!
Até que algumas desilusões e confusões sentimentais chegaram, sem avisar, para passar uns tempos comigo.
Ô mãe, me explica, me ensina!
O amor não é uma fórmula exata - finalmente ela me viu sentada, com olhos e ouvidos atentos ao que tinha para falar – onde os dois serão, eternamente, o somatório de um mais um. Amor é múltiplo de atitudes e acontecimentos que, quando em consonância, elevam o coração. Do contrário, quando em desarmonia, podem causar o mal até zerar.
 Confesso que não foram exatamente estas palavras que ela usou, mas de maneira simples (não menos sábia) minha mãe apresentou-me, na prática, a outra face do amor que tende a ser teórico. E me fez ver que ele é um conjunto de coisas que quando deixam de acontecer ele deixa de existir. Por isto me lembrei dela ao reabrir a caixa de cartões apaixonados que recebi ao longo da vida.
O amor não é concreto como um cartão romântico. Num cartão escrevem-se palavras bonitas que poderão durar sim, por toda uma vida ou além dela. Num pedaço de papel brilhante os sentimentos tornam-se invioláveis e as juras tornam-se eternas. Surdo dentro da caixa, um cartão de amor é inatingível aos gritos e ofensas. Cego na escuridão em que é guardado, um cartão não vê a traição. Na impermeabilidade da emoção, um cartão não sente a dor da decepção. Um cartão não perde a calma, nem a compostura, portanto nunca colocará o ódio para fora junto com o amor. Um cartão de amor passa ileso pela primeira até a última crise. A menos que você tenha o ímpeto de rasgá-lo ou queimá-lo, ele sobreviverá a muitas vidas. Mas o amor não.
O amor é frágil. Suscetível aos vaivéns emocionais, ele perde o chão, cambaleia e cai. O amor perde a cor com a tristeza; amarela com a indiferença; se rasga com a agressão; se desmancha sob as lágrimas.
Ainda que você teime em conservá-lo pelo resto da vida, o amor não pode ser protegido por uma caixa bonita e muito menos sobrevive na escuridão do guarda-roupa. O amor precisa de luz e – como diria a minha mãe - quando ela se apaga ele deixa de existir.
 

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