É o vazio que mata

 

 

Já estive ao lado da morte mais de uma vez. Para ser mais clara, por duas vezes a morte tentou pegar carona no meu carro. Em ambas ilesa, mas senti o odor gelado de sua presença próxima a mim, antes que desistisse de me levar com ela.
Pensando melhor, creio que só queria me assustar. Lançar seu sopro ameaçador na minha cara e me fazer despertar para a vida. Em ambas as vezes deu resultado. 
Por um período tomei consciência de que viver é o intervalo de tempo antes de morrer, e que é preciso otimizá-lo. Contudo, como tudo na vida, você acaba esquecendo, inclusive, da morte.
Até que, num certo dia, ela volta à cena fazendo um estardalhaço que é para lembrar que continua por aí, embora distante. E mesmo que você não sinta o seu hálito frio a congelar os poros, ela assusta! E desperta para o tempo que ainda tem antes de vir lhe buscar.
Quando a morte chegou de supetão em plena manhã de domingo, sacudindo o meu coração para me mostrar, embriagada, o que fez na madrugada, tomei um susto, xinguei, chorei, mas não pude fazer nada. Não pude mandar prendê-la, sequer esbofeteá-la com minhas mãos trêmulas de indignação. 

Definitivamente a morte não é algo para ser compreendido, apenas aceito. Pois a explicação é muito mais complexa do que saber de onde partiu a faísca que iniciou o fogo.
Morrer não está nos planos. Mais fácil acreditar em ganhar a Mega Sena acumulada e ficar milionário em uma semana; planejar uma volta ao mundo no futuro distante; esperar a cura do câncer pelo resto dos dias; do que cogitar a ideia de extinguir-se de uma hora para outra.
Não fomos educados para o fim, pelo menos não para o final trágico que acontece mais cedo do que se supõe. E (ingenuamente?) supõe-se que a morte só escolhe os que viveram até, ou além, da expectativa. Ainda assim, tenta-se ludibriá-la.
Adoramos brincar com a morte. Rir da sua incapacidade de nos alcançar em nossas atitudes imprudentes. Desafiá-la com o lenço vermelho, esquivando-nos no vão entre ela e a vida, até levarmos a chifrada fatal e nos acharmos injustiçados.
A morte não é algo que se deseje, óbvio que não. Contudo, ela não é uma escolha, tampouco um acaso, é a sentença proferida a nós no dia em que nascemos, e que jamais acatamos.
Não é o fato morrer simplesmente, é o fato de deixar de existir. A falta da presença pelos cômodos da casa; da risada única ecoando pelas paredes; do incessante abrir e fechar a geladeira; da bagunça personalizada cheia de meias e cuecas perdidas; do cheiro; da transpiração, do som. É o vazio que mata!

Por isso, nunca consegui dizer “meus pêsames”, nem “sinto muito” com convicção. Não há o que se dizer para explicar a morte. Não existem palavras para amenizar a dor de quem continua habitando o vazio. Só o silêncio se faz necessário numa hora destas, para que se ouça a voz do universo cumprindo a sua sentença.
E num lampejo de luz se possa aceitar que morte não deveria ser uma surpresa, cada dia a mais de vida é que sim.

 

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Creme de avelã


 
Limpava a caixa de entrada de emails quando me deparei com a Oração ao Anjo do Amor, enviada a mim há algum tempo por uma senhora gaúcha que encontrei rapidamente, e por acaso, em um restaurante.
Não sei explicar ao certo como a nossa conversa começou, mas lembro de quando, com os olhos brilhantes de felicidade, ela me contou que havia encontrado o amor de sua vida, depois de muito ter se desiludido e de ter completado sessenta anos. Lembro também, de que a sua exultação me fazia parecer mais velha e, certamente, desanimada naquela fila do buffet.
O amor tem destas coisas de rejuvenescer as pessoas instantaneamente. Volto a pensar no quanto seria bom se fosse acondicionado e vendido: “Amor solúvel e instantâneo”. Sem colesterol; sem lactose; sem glúten; 100% saudável!
E sem que eu tivesse proferido qualquer sussurro de socorro, a renovada senhora gaúcha achou por bem me ajudar. Afinal, não tinha dúvida de que fora a conversa diária com o Anjo do Amor que havia materializado o homem perfeito em sua vida.
Mas é preciso pedir direito, ela afirmou com veemência. Faça uma lista de todos os atributos que deseja que um homem possua, sem esquecer nenhuma, e reze. Reze todos os dias... e todas as noites também, de preferência.
 Prometi fazê-lo e ela prometeu enviar a oração por email. Sentamos para almoçar em nossas mesas separadas, e nunca mais nos vimos. Ela cumpriu sua promessa e eu não. Apenas guardei o email como uma espécie de envelope protegendo aquela oração, para o caso de algum dia achar por bem executá-la. Anos depois, ao encontrá-la durante a faxina na caixa de emails, não só não consegui lançá-la na lixeira como passei a pensar no anjo e no amor.
Confesso que me soa esquisito fazer um “checklist” das características necessárias para alguém vir a ser o meu amor, e, o que é mais constrangedor, lê-las diariamente para o anjo.
Caro anjo, me mande um cara maduro, mas não velho.  Aliás, vou grifar as palavras “maduro” e “velho” com cores distintas, para que fique bem claro que um não é sinônimo do outro. Não vá se confundir!
 A altura é importante. Precisa ter mais do que 1.80m, para que eu possa continuar usando meus maravilhosos saltos. Porém, se este for o único item incompleto pode-se abrir uma exceção, afinal as rasteirinhas estão cada vez mais charmosas.
Cabelo. É preciso que tenha cabelos! E que sejam naturais. Nada de Grecin 2000. Neste caso, podemos rever este item e colocar um adendo: Antes careca que tingido.
Dentes. Fator preponderante para uma relação vingar. Esteticamente, nada que seja radical. Arcadas simétricas próprias de usuários de aparelho ortodôntico são dispensáveis para a faixa etária que estamos procurando. Até porque, a irreverência de um incisivo lateral querendo subir no central pode ser uma particularidade encantadora. Sem falar que, assim, diminui o risco de confusão, prótese jamais!Nem bafo! Este último elimina todos os outros requisitos desta lista.
Barriga é, literalmente, o caminho do meio. Não precisa ser tanquinho, que é para evitar que possíveis lavadeiras queiram tomar emprestado, e nem “airbag” depois da batida. Apenas que esteja no lugar certo, atrás do cós.
Inteligência é imprescindível, mas que desconheça algumas coisas para que possamos aprender juntos. Menos o português.
Roupas. Não perca tempo com isto. Dou um jeito depois.
Ufa! Já fiquei entediada por aqui. Nunca fui metódica. Faço lista de compras e quando chego ao supermercado descubro que não sei onde a deixei.  Acabo tendo de utilizar o “olhômetro” para escolher o que necessito. Não sinto prazer em desfilar com o carrinho de compras pelos corredores pré-roteirizados. Acho maçante ter de enchê-lo com suprimentos básicos para as necessidades diárias listadas antes de sair de casa.
Por isto não cumpri a promessa feita à amiga relâmpago que quis me ensinar o caminho para encontrar o amor desejado.  Não conseguiria listar a pessoa ideal. Acabaria esquecendo qualidades importantes, me empolgaria com defeitos deliciosos. Levo o creme de avelã e esqueço a carne e do leite, entende?
Foi o que aconteceu com uma amiga para qual reenviei a tal oração. Quando perguntei por que o relacionamento havia acabado, ela respondeu que se esquecera de colocar na lista alguém com estabilidade financeira.
Gosto de pensar que o anjo existe e está pronto para ouvir os meus pedidos, assim que os faça, mas dispenso listas. Prefiro utilizar o “coraçômetro” para escolher quem necessito. Sei que corro o risco de esquecer a carne e o leite, mas também sei que não há nada mais delicioso do que uma colherada de creme de avelã na calada da noite.

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Muito prazer! Eu sou você.



Com a expectativa de vida beirando os oitenta anos, eu não consigo entender por que a galera do Terceirão fica tão estressada no ano pré-vestibular. Meninos e meninas que mal conseguem traduzir sua personalidade aumentam ainda mais a incidência de espinha, dor de cabeça, garganta e estômago ao somatizarem a responsabilidade de passar (de primeira) no primeiro exame de suas vidas.
Para os que já nasceram com manual de instrução colado no bumbum fica fácil identificar a verdadeira vocação. Lembro que chegado o momento de preencher o local destinado ao curso desejado fiz uma espécie de prova eliminatória, e acabei optando por aquele que abrangesse a maior possibilidade de garantir um emprego futuro. Ainda bem que (com o tempo) aprendi a rir das minhas próprias palhaçadas.
Pode demorar para você descobrir sua verdadeira aptidão. Até mesmo uma vida inteira pode não ser suficiente. Então, por que uma das escolhas mais importantes da história de alguém precisa ser feita com tanta urgência? Por que colocar sobre os ombros destes jovens inacabados o peso de suas apostas inseguras e forçá-los a dar um passo firme e certeiro?
Leva mais tempo do que apenas uma infância e uma adolescência para você saber quem realmente é e, consequentemente, o que quer. Por isso, num primeiro momento, você corre o risco de ser o que os outros querem que seja e, se não for atento e esperto, pode passar o resto dos dias que lhe cabem sendo o que não é.
Decodificar a configuração do meu ser foi uma excursão atrapalhada por algumas tribos distintas. Nasci menina, brinquei de boneca, mas preferia aventuras. Nasci mulher, usava vestidos, mas detestava rendas e frufrus. Nasci virgem, ouvi muito rock, mas foi a música popular brasileira que ficou gravada em mim. Nasci filha, fui filha, mas sempre quis ser livre. Nasci católica, estagiei no Budismo, me descobri espírita. Nasci analfabeta, fui uma boa aluna, mas só queria escrever.
De professora à atriz, desejei ser muitas coisas. Numas apostei e errei, noutras errei em não ter apostado. Formei e pós-graduei para descobri que diploma não garante emprego, e que ter emprego e salário não assegura a felicidade. Embora tenha aprendido também (a duras custas) que alguns requisitos para ser feliz precisam ser muito bem pagos, e a moeda não é o sorriso.
Contudo, quando vejo a preocupação tomar o lugar da descontração e passar a dormir junto com a galera dos “cara espinhada”, tenho vontade de sacudi-los antes que entrem no pesadelo. Há tanto tempo pela frente. Tantos caminhos a serem explorados. Tantas paisagens a serem descobertas dentro e fora de si. Para que tanta pressa de entrar no mundo dos “bixos” presos aos títulos imponentes?
Há tantas línguas a serem aprendidas. Tantas linguagens para serem interpretadas. Tantas fórmulas a serem decompostas. Tantas equações para serem resolvidas, antes de adentrar no “campus” da complexidade das teorias prontas e cálculos exatos.
Há tanta prova a passar. Tanto que errar e se arrepender; tentar e não conseguir; querer e não ter; perder e chorar; antes de conseguir atingir a média e passar para a fase seguinte.
Há tanto que se estranhar, antes de se descobrir, que temo pelo peso da opção apressada das cabecinhas cheias de vento. Temo por anos de felicidade induzida e realização guiada pelo piloto automático.
Se for para perder tempo, para que tanta pressa? Para que errar primeiro e tentar acertar mais tarde, se é garantido acertar mais tarde se conhecendo primeiro?

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Por que não?


 



Nunca tive empatia pelo “não”, mesmo quando era adolescente e esta era a palavra chave para abrir a porta do domínio rebelde e me exibir sentada na poltrona do ego. Dizer não para me mostrar poderosa me causava taquicardia.
O não por si só sempre me soou como o estridente apito de fraqueza. Dizer não só por dizer é uma disfarçada confissão do medo de olhar para fora de si e encarar os fatos com a visão do outro. Dizer não imediatamente, sem sequer conjecturar as possibilidades, é maneira mais escancarada de pregar as portas e janelas do seu mundo e gritar “Daqui não saio! Daqui ninguém me tira!”
Mas houve, numa certa época, um movimento social muito veemente sobre a necessidade de as pessoas aprenderem a dizer não. Como toda autoajuda, exemplos práticos ensinavam técnicas de expressar a negação diante dos fatos e acontecimentos.  Um treinamento, uma infusão cerebral da semente do não como antídoto para uma vida mais livre e leve.
Cheguei a acreditar. Ser humano é assim, propenso a assumir modismos. Basta a coisa tornar-se popular e reconhecida para você adotar como se fosse ideia ou feito seu.  Pensando bem, este hábito de copiar e reproduzir coisas feitas pelos outros é a característica humana que mais me faz crer no meu tatatataravô Macaco.
Mas não funcionou. Sair dizendo “não” só para provar o meu poderio sobre mim mesma me colocou sentada na poltrona do ego, aquela onde eu adorava ficar quando era adolescente, e desencadeou a taquicardia outra vez.
Com esta tentativa fracassada, confesso que passei a achar que EU era uma fracassada. Num linguajar mais coloquial diria que, por algum tempo, me considerei uma “boca aberta”. Lembro até de um personagem da TV inspirado em mim (o Waldir do Jô Soares). Toda vez que ouvia um desaforo ele fazia cara de abobado e dizia “Ah! É, é?” E só se lembrava da resposta que deveria ter dado, tempos depois, quando já era tarde. Waldir era o meu espelho, e eu detestava a minha imagem.
Aqueles livros de autoajuda quase me destruíram!  Quase conseguiram me convencer de que pessoas fortes, inteligentes e independentes precisam dizer NÃO com letra maiúscula, que é para demarcar seu território. Talvez tenha vindo daí o costume que algumas pessoas tem de querer “mijar” nos outros.
Quer dizer ,então,  que eu não nunca devo dizer não? Óbvio que não! O não é uma ferramenta de expressão do sentimento contrário que deve ser utilizada sim. Mas não sem antes analisar o porquê.
Um outro programa de TV mostrava um personagem ( o Zeca do castelo Rá-Tim-Bum) que adorava saber os porquês, e sempre que alguém lhe dizia “porque não” ele retrucava “porque não, não é resposta.” A resposta ao “porque não” precisa ser dada a nós mesmos. Por que estou dizendo não?
Existem tantas coisas antes de um não. O medo de perder uma posição profissional faz com que pessoas digam não a uma nova ideia. A insegurança diante de um novo desafio faz com que pessoas digam não a um novo projeto. A baixa autoestima faz com que pessoas critiquem criações de outras pessoas. A falta de conhecimento faz com que pessoas rejeitem teorias. A falta de argumento faz com que pessoas neguem uma conversa. O descontrole faz com que pessoas recusem opiniões diferentes. A imaturidade faz com que pessoas contrariem para se proteger.
Há tantas coisas antes do não. A coragem de aceitar uma ideia, ainda que não seja sua. A força de encarar um desafio que apavora. A grandeza de exaltar as criações de outras pessoas. A sabedoria de conhecer novas teorias. O aprendizado de uma conversa construtiva. O crescimento de ouvir opiniões diferentes. A maturidade de assumir-se inseguro algumas vezes.
São tantas coisas para pensar e analisar antes de dar uma resposta que quando ouço um não sem espaço para o "talvez; quem sabe", tenho certeza não de ter ouvido uma escolha, e sim uma defesa “Daqui não saio! Daqui ninguém me tira”!

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