Salvo pelo pão


Tem uma coisa que eu devo admitir como um péssimo hábito meu: gostar de ouvir, sem querer, uma conversa alheia. Não a título de fofoca ou com teor de maldade, é que todo escritor precisa de uma fonte, onde mergulhar sua mente e emergir cheio de idéias as quais passa para o papel. Assim, mergulhar em conversas interessantes e pitorescas é meu hobby assumido.
Num dos inesquecíveis mergulhos encontrava-me sentada num restaurante e, muito próximo a mim (para não dizer na mesa colada à minha), os personagens principais que chamarei de Afonso, Inês e Borba.
Os três jantavam calmamente ao que pude observar: filé de peixe, arroz, salada e batatas soutê. Borba o mais velho, que me pareceu ser o pai de Inês e Afonso o mais jovem, o provável namorado. Conversa vai, conversa não vinha... Até que Inês, no furor do entusiasmo feminino, entoou em som agudo e alto a frase fatal:
- É que estamos pensando em morar junto, não é Afonso?
Esqueci de acrescentar que, além de ouvir histórias, adoro estudar gestos e expressões faciais. Foi quando imediatamente olhei para Afonso que apenas olhou para Inês e jogou o queixo timidamente para frente. O que eu supus que seria um sim. E Inês continuou.
- Claro papai que já está tudo combinado. O Afonso vai reformar o apartamento para que eu possa me mudar o mais rápido possível. Não é “Mor”?
Mas, “Mor” não estava ali presente, pelo menos não de espírito. Eu tinha a impressão de que o futuro noivo estava nas nuvens, e algo me dizia que não era numa viagem de sonhos. Afonso não falava. Estava vermelho, mantinha o guardanapo de papel entre o pescoço e o queixo e tinha a tez mais vermelha do que o tomate da salada. Mas Inês não percebia.
- Vamos precisar de uma ajuda, pai. “Tipo”, alguns móveis, porque o Afonso mantém aquele apartamento praticamente nu. Não você “Mor”!! Você anda sempre bem vestido (risada histérica).
Papai Borba, desde o início mantinha-se entretido com a programação da rede Globo e incrivelmente alheio aos acontecimentos. O ministério das famílias adverte: “Televisão em restaurante, além de cafona, poda a interação familiar.”
Enquanto isso, “Mor” passava do vermelho arroxeado para o verde avermelhado, ao mesmo tempo em que lágrimas lhe saltavam dos olhos esbugalhados. E Inês continuava.
- Então papai, o que você diz?
- Hã?! Ah, se vocês têm certeza que é isto que desejam.
- Claro que temos! Afonso está aqui para lhe comunicar.
Pensei em me meter na conversa e dar um soco nas costas de Afonso, mas apesar do meu grau de entendimento do que estava se passando, a etiqueta manda não se meter na conversa alheia (no meu caso, apenas ouvi-la). Para o meu alívio, pela primeira vez Inês presta atenção no futuro marido.
- Afonso, você não vai dizer nada? Estou aqui, falando e você aí com esta cara de pão dormido.
Sem querer, Inês falara a palavra mágica. Afonso voa sobre a cesta de pão que havia sido servido como entrada e tira um substancial pedaço do miolo empurrando-o goela abaixo. Os olhos marejados de lágrimas se espremeram de desconforto enquanto a espinha de peixe descia pela traquéia. Salvo pelo pão, Afonso dá algumas tossidas e volta a respirar normalmente e responde numa voz indefinida.
- Claro querida é isto o que desejamos.
Inês sorri melosa e toma as mãos de Afonso nas suas. Borba vibra ao ver o gol do flamengo explodir na rede da “telinha”. Afonso olha desconfiado para o filé de peixe deitado no prato.
Eu, satisfeita com “gran finale”, aos gourmets do mundo recomendo: assim com todo barco deve possuir barcos salva-vidas, todo peixe deve vir acompanhado de uma cestinha de pães.

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Surpresa é...



Serenata fora de hora
Caixa com laço de fita
Flores que brotam na porta
Quando não se espera visita
Café na bandeja
Jantar a luz de velas
Amor à meia luz
Eu te amo de sobremesa
Chegada antecipada
Beijo roubado
Casa comigo
Resposta inesperada
Parabéns às escuras
Som de mensagem
Paixão que começa na rua
 Arco-íris depois da chuva
Encontro que não foi marcado
Brinquedo dentro do ovo
Bilhete premiado
Nome na lista dos aprovados
Presença despercebida
Abrir de olhos fechados
Coração em disparada
Presente dentro da vida


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Você com lacre


Hoje é um daqueles dias que você acorda com a certeza de que a cegonha alienígena, responsável pela sua entrega, sofria do mal de Alzheimer e não só esqueceu completamente o endereço, como perdeu totalmente o senso de direção entregando-o no planeta errado. Assim você é um legítimo Venusiano (escolhi Vênus porque Marte já deve estar superpopulacionado, badalado, poluído e coisa e tal) vivendo na Terra.
Podemos designar hoje como o dia em que você se sente um peixe usando máscara de oxigênio para conseguir sobreviver fora d’água. Ou um patinho nascido diferente que vive a questionar, se o cisne é mais bonito mesmo ou só aparenta porque faz parte da maioria.
Já se imaginou sendo vítima de bulling? A pessoinha achincalhada pela turma, que é ridicularizada até as últimas consequências. A que tem seu lanche roubado; que senta no catchup, no alfinete ou no chão porque puxam a cadeira; a que leva a culpa, leva tombo, leva porrada e todos os desaforos para casa. Este é um daqueles dias em que você se sente um ser completamente excluído do meio em que convive.
Sabe aquele dia que você sonha que saiu na rua vestindo camisola, pijama, cueca ou totalmente nu; que as pessoas lhe olham e riem, xingam ou viram a cara, e você só quer encontrar um buraco no chão que tenha tampa (que em lugares de primeiro mundo existem e se chamam bueiros) para se esconder? Este é um desses, só que você não está sonhando.
E o pior (ou melhor, não sei) é que lá no fundo, no âmago da sua origem, na identificação do seu DNA, você sabe que o estranho é o ninho, e não você.
Claro que não é sempre assim, lógico que há dias em que você se sente parte da turma. Aquele dia no qual ri das piadas de mau gosto com tamanha convicção que chega escorrer lágrima dos olhos. Que lê porcarias, baixarias, tiranias, vira ou deleta a página e o assunto sem afetação alguma, e ainda pensa (como é mesmo a frase?): ”Perdoai-lhes senhor....eles são novinhos, ainda aprendem.” Que o vizinho obriga você a ouvir (o dia inteiro e no mais alto volume), Paula Fernandes, Luan Santana, Gusttavo (com dois tês?) Lima, Michel Teló... e por aí vai! E você não só finge não ouvir, como tenta colocar em prática as teorias “gosto não se discute” e “depois da tempestade sempre vem a calmaria.”
Mas não hoje. Hoje você é você com lacre. Inviolado. Este você, que habita o planeta Terra (por engano ou não), mais precisamente o país que se chama Brasil, e que se nega, terminantemente, a aceitar e aplaudir que uma música inteira que se resume em d
elícia, delicia/Assim você me mata/Ai, se eu te pego/Ai, ai, se eu te pego... chegue a primeira posição em países da Europa, rendendo milhões (quantia que um extraterrestre como você nem consegue mensurar) ao intérprete da mesma; se recusando também a cantar, ouvir e achar bonitinha a versão em inglês. 
Entender que um jogador de futebol, além de ditar uma moda horrorosa de cabelo, fature uma quantia ainda mais inimaginável (para você, venusiano) estando com a vida e de toda a família assegurada além da morte, sem ter tido que ralar para conseguir algum diploma ou ser aprovado em algum concurso importante.
Constatar que um bando de Babacas Bombados e Bombadas (salvo alguns venusianos largados no meio deles), que parecem personagens digitais vindos de outras galáxias (de Vênus não!) tem chamado (pela 12ª vez) a atenção do país inteiro para suas babaquices, tornando-se notícia de primeira mão (e grandeza) dos noticiários, revistas, internet e casas de família.
Hoje você acordou com o direito da legitimidade que lhe cabe e se nega, definitivamente, a fazer parte da facção criminosa (para os venusianos, praticar lavagem cerebral na população é considerado crime hediondo) aqui instalada e chamada Rede Globo.
Hoje é uma daqueles dias que você se olha no espelho e se vê inteiro por dentro, e assume-se deliberadamente diferente. Hoje você não se importa em ser julgado, condenado e deportado, até deseja, ardentemente, que lhe mandem de volta para Vênus, de onde nunca deveria ter saído.


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Ave de festa


Algumas consequências da evolução, por vezes, me parecem tão inconsequentes que tenho vontade de ordenar meia volta volver!!! Agora mesmo, neste instante, gostaria que minha voz alcançasse os ouvidos das mulheres deste ...(ia escrever Planeta, mas preferi me restringir ao país e poupar consideravelmente meu gogó).  Como ia dizendo, se minha voz chegasse aos ouvidos de todas as mulheres deste Brasil em rebuliço, elas estariam me ouvindo, sonoramente, perguntar:
- Meninas, mulheres, queridas, fofas, lindinhas... Vocês estão pirando de vez?
O que irei escrever aqui poderá me custar a inscrição CARETONA colada na testa, mas não to nem aí! Vamos combinar.  O que esta mulherada têm feito com elas mesmas é assunto para uma parada obrigatória no processo evolutivo da humanidade. STOP NOW!!!
Saber que a liberação sexual sucumbiu com todo e qualquer padrão moral e espiritual, transformando a transa no passo seguinte ao beijo; assim: beijou → transou.  Eu já sabia.
Que os pais com medo de reprimir e serem rotulados, ironizados e desrespeitados, fecham os olhos, rezam e indicam pílula e camisinha. Eu já sabia.
Que a vulgaridade feminina tem assustado os homens de todas as idades e que, no frigir dos ovos, eles acabam escolhendo aquelas com menor quilometragem na estrada das experimentações corporais. Eu já sabia.
Que os modelos “pornotelevisivos” que ao primeiro instante repugnam, logo estão sendo imitados (vide os silicones exagerados abrindo alas nas baladas; os micro-tubinhos de lycra revelando garotas atrapalhadas entre equilibrar-se no salto e esconder a....calcinha; as danças vulgares dos ritmos ordinários coreografando o erotismo barato de fazer vergonha às dançarinas dos cabarés da Belle Epoque parisiense.)Eu já sabia.
Que a oferta de homens, consideravelmente menor do que de mulheres, tem diminuído a possibilidade de encontrar um par para amar e se amada e, consequentemente, criado “mulheres outdoors” que se oferecem escancaradamente, escandalosamente e desesperadamente ao publico masculino. Eu já sabia.
O que me levou a este interlúdio no processo evolutivo da espécie feminina, logo depois de ter decretado estado de emergência na minha alma feminal, foi, assistir de camarote mulheres decretando-se “bebuns” com muito orgulho e sem pudor.
Um misto de asco e piedade acontece em mim cada vez que leio ou ouço uma mulher escrevendo ou anunciando que vai sair pra beber e nem Deus sabe no que vai dar. Como se isso fosse admirável, sensual , atraente! Vou fazer jus ao rótulo que já deve estar colado em mim e dizer que, para a caretona aqui, não existe nada mais vulgar, repelente e deprimente do que uma mulher bêbada. E sou capaz de apostar que a maioria dos homens, neste aspecto, é tão careta quanto eu.
Meninas lindas, vestidas com as grifes mais caras da praça têm usado equivocadamente a garrafa ou o copo como acessório para garantir o status entre a espécie masculina, tentando ser aprovadas e provadas pela tribo que sempre apreciou em maior abundância a bebida alcoólica. Mulheres que no desequilíbrio das emoções tentam igualar-se a eles na ilusão de apaixoná-los. Quanta desilusão!
Festas e fotos ficam mais atrativas e curtidas com uma taça na mão. O glamour no champanhe; o mistério no destilado; a descontração na cerveja; são os atributos da imagem que elas posam e creem que adquirem aos goles. Quanta ilusão!
Corpos seminus e sem pose, curvados sobre a privada despejando o líquido azedo ingerido na noitada; maquiagem borrada; choro descontrolado e frases desconexas é decoração corriqueira nos toaletes femininos. Quanta “porquidão”!
Mesmo sendo este mais um daqueles casos em que o problema não é meu, tenho a impressão que o rótulo que garante a autenticidade do meu teor feminino esteja sendo adulterado. É como se a qualidade de ser mulher já não valesse nada, pois as cópias mal feitas estão dominando o mercado. Sinto-me uma mercadoria barata, ainda que tente manter minha legitimidade.
Beber não é pecado, até porque faz tempo que pecar é uma questão de consciência e não de religião. Agora, se oferecer de bandeja feito ave de festa, embebida no álcool para amolecer a carne e ficar mais apetitosa, é total inconsciência (para não dizer coisa pior). A ressaca no dia seguinte é garantida, o vazio também.


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A CARTA QUE NÃO ESCREVI


Perdoe a carta que segue. Se seguir fosse fácil não precisaríamos de mensagens. De conselhos bem feitos, redigidos com palavras rebuscadas.
Melhor seria dizer-te: SIGA? A voz não sai. O pensamento ordena-me que escreva: PARE!
O que faço? Estamos as duas nesta encruzilhada. Uma desejando seguir, outra ordenando que volte.
Que droga é a vida! Que entorpece a razão e alucina os atos. E agora o que faço? Digo que estás certa só porque te amo? Ou nego-te a razão por te amar demais?
Quem mandou sermos duas! Agora, tu pensas que sei o caminho certo. Que sou a conselheira com a resposta exata. Agora, eu penso saber por onde deves andar e me dou o direito de te aconselhar.
Devíamos ser únicas. Uma só, vivendo de um só coração. Assim não haveria equívocos, não existiriam impasses. Erraríamos juntas e depois, com sorte, poderíamos consertar.
Mas não! Tu és dona do teu coração e, pertence a mim o que em meu peito pulsa. Como posso escrever-te agora, se não direi o que desejas ouvir, mas o que anseio que faças?
Não posso! Não vou apontar-te direção alguma. Sequer posso dizer-te que já me encontrei. Lembro o teu olhar enviesado quando tomei esta estrada. Entendi a mensagem mesmo que não tivesses me dito nada.
Agora é minha vez.
Esta carta só tem começo e um fim. Desejo que sejas feliz. Digo que te amo.
O meio é só uma prece para que Deus te ilumine.
Ao decidir-te nesta encruzilhada, não terei indicado placa nenhuma.
Mas, se estiveres atenta perceberás (num subscrito discreto feito por letras pequenas) que, independente, do caminho escolhido estarei caminhando contigo. Posso não dar-te a razão que tanto desejas agora, mas garanto a acolhida.                                                             
           Eternamente,
                          Amiga

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ANJO OU DEMÔNIO

                                 

Vivemos num mundo paradoxalmente perfeito e imperfeito. Perfeito ao que se refere às obras da natureza. Imperfeito ao que se refere às ações degradantes do fator humano. Podemos e devemos nos qualificar, sem medo e com vergonha, como os agentes poluentes do “wonderful world”.
Das várias formas de poluir, de sujar e de deteriorar,a poluição ambiental é apenas uma delas, e neste momento não é sobre ela que vou discorrer.
O universo perfeito encontra-se doente, vítima de vícios destrutivos que, de uma forma sutil e gradativa, corroem a atmosfera do bem transformando o ar que respiramos em dependente e sujo.
Da mesma forma, não me refiro aos vícios identificados pela ciência. Estes estão escancarados nos outdoors da vida e são tão bem conhecidos quanto controláveis. A todo instante nossa mente lê a lição que alerta: O fumo mata, o álcool mata, a droga mata. Ou seja, tememos muito mais aquilo que tem forma.
Refiro-me ao desequilibro que, talvez, seja o gerador de todas as catástrofes. Aparentemente subliminar e inofensivo (como a figura do mal geralmente se apresenta), oculta a perversidade dos efeitos nocivos que tem causado, e que imperceptivelmente faz aumentar o buraco da camada energética do planeta.
Os que creem (assim como eu) que, o universo é uma cadeia energética, na qual o positivo e o negativo são geradores de energias similares e como imã atraem aquilo que causam, já devem ter matado a charada na qual os envolvi até aqui.
Então é isto, a negatividade está no ar. O ser humano reveste-se de uma massa corpórea agradável aos olhos (aparentemente inofensiva), conseguindo desta forma ocultar a energia destrutiva armazenada em seu íntimo. Alguém já ouviu falar em “lobo em pele de cordeiro?” Qualquer semelhança não é mera coincidência. O vicio do mal prolifera-se pelas ruelas do nosso dia a dia, como um garoto indefeso, que a qualquer hora aponta um punhal e fatalmente machuca.
As pessoas estão viciadas em falar mal dos outros, em desejar mal aos outros, em caluniar os outros, em difamar os outros... Simplesmente porque o êxtase da felicidade própria só é alcançado cheirando, bebendo, tragando, a infelicidade alheia. Vício maldito que a ciência não rotula, e por isso permanece nos “indoors” da mente doente. Lobo feroz, capaz de aniquilar sem deixar rastros.
E aí, vemos seguidores de Deus, sentados sobre bancos, buscando nos diversos tipos de oração a indulgência para suas fraquezas. Pobre Deus! Que nos deu o livre arbítrio, e nos conferiu o seu próprio poder. Talvez aí tenha havido a distorção. O mundo está cheio de semideuses tortos, que se acham com o poder de julgar, condenar e executar (os outros). Porque o espelho de cada um deve estar refletindo a toda hora uma figura dotada de asas brancas e auréola luminosa.
Pobres seres poluidores do universo, propagadores de uma energia destruidora. O bem e mal não possuem forma, mas têm o poder de criar ou destruir. Miremo-nos melhor em nossos espelhos. Assim como asas e aureolas são meros elementos figurativos; chifres e tridentes também o são. Anjo ou demônio é a energia que mora dentro de nós. Portanto, o nosso céu ou o nosso inferno já se encontra em construção (a todo vapor).  E adivinha quem é o arquiteto?

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A história do beijo




Outrora raridade...
Objeto de delito dos moçoilos da época.
Quão ricos se sentiam, se seus lábios se elevassem
Além da mão da donzela.
Desbravando a seda pura, a boca na carne trêmula
Do braço, banhado de alfazema.
Era o êxtase!
Porém aos malandros de plantão, pois no mundo sempre houve,
A boca era feita para o beijo, nunca o braço ou a mão.
E acontecia!
Atrás das palmeiras, embaixo do balcão,
Por trás da tia distraída, durante o ronco do patrão.
Que fossem rápidos, deixemos bem claro,
Caso alguém flagrasse o ato despudorado
Podia considerar-se marido, o pobre namorado.
O beijo nasceu com o mundo
Tímido, ousado, pedido, roubado.
Fingido, verdadeiro, seco ou molhado.
Como se vê e sabe,
O beijo, este tocar de lábios
Tão simples de definir.
É o verdadeiro fruto do diabo
Desde que Deus fez Eva existir

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As obras que Deus não construiu

Pôr do sol no rio Araranguá.

Em minhas mãos a narrativa impecável do autor sobre sua viagem à Europa, no instante em que ele adentra a Basílica de São Marcos situada na apaixonante e apaixonada Veneza.
A realidade com que descreve cada instante captado por seus olhos permite que eu visite com ele a admirável edificação arquitetônica executada para a digníssima paragem de Deus.
Passeio os olhos pela sagrada catedral e desenho em minha mente paredes, colunas, teto, piso ornados por mosaicos de formas geométricas e figuras cuidadosamente arrematadas com o mais puro ouro e bronze, além de uma variedade riquíssima de pedras.
Atrás do altar do santuário descubro o Pala d'Oro, o altar dourado  cravado de jóias. No interior do rico templo encontro o conjunto de guardiões de bronze; os quatro cavalos que por séculos permaneceram no alto da Basílica e que agora repousam silenciosos e estáticos em seu interior. Viajo enfim, através da história que leio, pelo encanto desmesurado feito pelo homem para guardar a Deus, aos santos e aos que a eles adoram.
Mas na exatidão do relato da beleza captada nas dezenas de linhas bem escritas, duvido que em qualquer momento tenha sentido a presença divina. Vasculho então, em retrocesso, o caminho percorrido pela magnífica igreja a fim de encontrar num canto esquecido algo que me faça lembrar do Pai ou do filho que aqui esteve e nada acontece. Guardo com o marcador a página que causou este impasse e fecho o livro.
Cerro os olhos por alguns instantes e o canto ininterrupto das cigarras invade os meus pensamentos. Simultaneamente um quero-quero grita muito próximo a mim. Abro os olhos e vislumbro-o precavido sobrevoando o ninho onde certamente repousam seus filhotes. Estendo o olhar pelo horizonte e me ponho a acompanhar as pequeninas dobras de água sobre o imenso lado. Suaves ondulações que a brisa mansa de verão consegue ocasionar.
Encho os pulmões com o frescor do final da tarde e resolvo mergulhar os pés na água morna. Peixinhos recém-nascidos se assustam com a minha presença e fogem atrapalhados para longe da margem. Gargalhadas infantis quebram o silêncio do momento porque perto dali um grupo de crianças banha-se despreocupadamente.
Como no livro que acabara de ler, percorro em segundos o lugar que me circunda. O lago imenso margeado pela vegetação nativa; o céu que se pinta de vermelho prenunciando o anoitecer; os pássaros e insetos que desfilam indiferentes a mim; as crianças que brincam felizes... E, diferentemente do impasse ocasionado pela página recém-lida, para cada canto que olho reconheço a presença de Deus e do filho seu. Descubro-me envolta por um belíssimo santuário natural.
Um arrepio ligeiro percorre o meu corpo como se o Espírito Santo viesse congratular-me pela descoberta. A inexistência de altar não exige que me ajoelhe. Com a água cobrindo meu corpo até a altura do coração, começo a falar com Deus.

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Melhor nem começar



- Mãe! A máquina de lavar roupa parou!
A máquina que espere! Não tem cabimento eu parar no meio de um texto, porque as roupas umidazinhas querem tomar sol. Agora não! Agora o canal que me liga ao vale das inspirações está completamente desobstruído, permitindo-me deliciar-me com as idéias... O que ia escrevendo mesmo?
- Quem colocou a água para ferver? Está fervendo há uma hora!
Fui eu. Lógico que fui eu! Quem mais nessa casa pensaria em fazer um café passado? Este fato ninguém considera, mas o alarme da água afogueada saindo da chaleira é culpa exclusivamente minha. E lá eu tenho culpa! Se em meio a uma colherada e outra do pó despejando-se no filtro me deu uma coceira?
Êta, coceira danada que não escolhe momento para atacar! Comichão gostoso daqueles que é melhor nem começar, senão não consegue parar. E quem disse que me contenho? Largo o pó e o bule; esqueço a água na chaleira e me ponho a coçar, ou melhor, a escrever.
- Já desliguei o fogo, o que faço agora?
Café, meu amor! Despeje a água fervente sobre este saquinho branco recheado de pó marrom e faça brotar café. Por que as coisas são tão complicadas para quem não quer fazê-las? Alguém mais nesta casa poderia fazer aquilo que não gosta enquanto estou ocupada fazendo o que amo? O que eu estava escrevendo mesmo?
- Mãe! Não vai estender a roupa? Daqui a pouco chove!
E não é que chove mesmo? Saudade daquele tempo em que bastava olhar para o céu da manhã para ler como seria o resto do dia. Foi-se o tempo em que minha região era regrada. Primavera era primavera; verão era verão; outono era outono e inverno era inverno. Nada da natureza ficar causando surpresinhas sem graça ou sustinhos desgraçados. Parece mais uma mulher em meio a TPM (ou seria menopausa?). Pior que quem sofre com todo este desequilíbrio somos nós. Raios!
Raios agora não! Bem na metade do texto. Dá um tempo São Pedro! Tô aqui no maior entusiasmo, curtindo esta coceirinha gostosa, me arranhando de tanto escrever. Fiquei mal com as roupas impacientes; já mandei alguém tomar... Café! Agora vem esta ameaça covarde carregada de eletricidade me obrigando a desligar o computador? Tenha dó!
Dá até pra contar em verso. Sabe como é?
Depois que começo é difícil parar. Não adianta chamar, gritar espernear, não me levanto enquanto não finalizar. Não é birra, nem capricho. Quando começa o comicho é pegar ou largar. Se pego, quem diz que quero soltar? Não antes de concluir. Não sem alcançar o último ponto final. Sou louca de soltar a linha? Vai que a idéia voe desgovernada e caia estatelada no quintal. De uma casa que não a minha. Volta pra mamãe queridinha!
-  CABRUMMMM!!!!!
Minha nossa, tá feio! E eu já no último parágrafo! Melhor aproveitar o tempinho entre um relâmpago e outro. Chegar ao ápice e não gozar? Ninguém merece! Ainda tenho um minutinho ou dois...Sobre o que eu estava escrevendo mesmo?
De esquecer a roupa, a água, o café; de não lembrar. De começar e não parar. De não querer interromper, a coceira danada de escrever. Nem tudo é perfeito. O tempo não é só meu, fazer o quê? Vai que são Pedro se irrita e manda um raio cair bem no meio do meu micro. Aí não! Matar minhas jóinhas, minhas crônicas, poeminhas ... Isola! Bate na madeira! Já estou quase no final. Vai aliviando a coceira. Tudo volta ao normal. Pronto! Lá fora está um caos. Ponto.

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Mary Pan

 



HÁ muito tempo descobri que dentro de mim vivia outro ser. E que este ser se assemelhava muito ao Peter Pan das histórias infantis.
Para quem não lembra (o que é uma lástima), Peter Pan é aquele garotinho que veste uma roupa verde que parece com a vestimenta de um bailarino clássico; usa uma faquinha na cintura e um chapéu que nunca identifiquei a origem. Pois bem, Peter é um menino que nunca quis crescer.
Em homenagem a ele passei a chamar a outra pessoa com a qual divido este corpo, de Mary Pan. E a Mary que vive em mim, tal qual o personagem da história, nunca cresceu.
Tenho que confessar que, por certo tempo, eu achei que isto fosse caso para psicanalista. O que me fez conviver com Mary numa relação secretíssima.
Mantínhamos, eu e ela, uma convivência conflitante, na qual, na maioria das vezes eu precisava frear os impulsos aventureiros a que ela me impelia. Passei por muitas situações embaraçosas por conta disto. Da vontade de gargalhar nos momentos mais sérios; de sair correndo na rua ou de cantar a todo gogó enquanto fazia compras no supermercado.
Contudo, consegui controlar Mary com muita competência. Ao ponto de sufocá-la em meu íntimo e assassiná-la por repressão, passando, então, a viver uma vida de gente grande, sem lapsos de loucura. Por um bom tempo Mary Pan ficou esquecida dentro de mim para que eu pudesse ser uma universitária promissora, uma mulher exemplar, uma mãe responsável, uma profissional séria. E tudo ia bem, neste ritmo em que os seres normais (nem um pouco bipolares) deveriam viver. té que percebi que, não só eu tinha assassinado Mary Pan, como tinha assinado a minha sentença de morte. Sim, porque ao enterrar o meu pólo infantil nada me restara a não ser envelhecer dia após dia, até o fim.
– MARY PAN, CADÊ VOCÊ?
Tratei de resgatar minha alma caçula e passei a mimá-la desenfreadamente para que ela conseguisse trazer de volta toda a vivacidade que perdi ao abandoná-la.
Hoje eu e Mary vivemos em harmonia. Em momentos os seus lampejos infantis se sobressaem à minha sobriedade, noutros a minha maturidade aquieta suas atitudes tempestivas. Com isso, minha pele ganhou viço. Meus olhos, brilho. Meu corpo, agilidade. Minha mente, sonhos. Minha alma, felicidade. Meu coração, paixão.
Com Mary Pan mais viva do que nunca dentro de mim comecei a perceber que (se não todas) a maioria das pessoas guarda uma criança dentro de si. O que foi um alívio. Isso não só me livrou de um laudo de loucura, como me levou a descobrir muitos coleguinhas de Mary por este mundo.
Quantas vezes você sentiu vontade de largar o trabalho no meio do expediente para caminhar na praia ou não fazer nada? Virar para o lado quando o relógio despertou, e dormir até não ter mais sono? Sair andando sem rumo, juntando as pedrinhas diferentes no chão? Dançar na fila do banco? Cantar no meio de uma reunião? Mostrar a língua pra quem o xingou? Chorar quando se machucou? Pedir colo quando desanimou? Lançar um olhar diferente para alguém que chamou sua atenção? E trocar o telefone sem dar, nem pedir, explicação?
Quantas vezes você ficou olhando para o fogo até os seus olhos arderem? Para lua, procurando ver o dragão de São Jorge? Para o mar, imaginando onde ele vai acabar? Para o sol saindo de dentro d’água, sem sequer se molhar?
Não sei o nome da sua criança, mas sei que existe uma em você. Deixe-a aflorar e ame-a.
Amando-a a manterá viva. Mantendo-a viva, viverá mais. Vivendo mais, terá tempo de descobrir que a felicidade está dentro de você.
Dê a ela o nome que quiser. A minha se chama Mary Pan.

(Do meu livro Na sala de espera.)

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Depois do fim



Acordei sentindo que havia algo a ser feito
Que deveria fazer direito
Para não me arrepender.
Procurando achar tudo diferente
No ar, na vida, na gente
Perfume, forma, cor que pudesse ver.
Acordei buscando o caminho certo
Que disseram, era aqui perto
Que deveria percorrer.
Tentando começar a caminhada
Como se atrás não restasse mais nada
Que pudesse esquecer.
Acordei pensando ser outra pessoa
Que leva a vida numa boa
Sem saber o que é sofrer.
Forçando a mente e o coração
Entre o pensar e a emoção
Aprendesse a aprender.
Acordei vendo o nada
Dia aceso, luz apagada
Tudo igual como não devia ser.
Enxergando a mim refletida
Nada mudou na vida
Ainda que quisesse querer.
Acordei igual e isto pareceu errado
Não vi início, depois do fim anunciado.
Nenhum indício para deixar de viver.

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