Você com lacre


Hoje é um daqueles dias que você acorda com a certeza de que a cegonha alienígena, responsável pela sua entrega, sofria do mal de Alzheimer e não só esqueceu completamente o endereço, como perdeu totalmente o senso de direção entregando-o no planeta errado. Assim você é um legítimo Venusiano (escolhi Vênus porque Marte já deve estar superpopulacionado, badalado, poluído e coisa e tal) vivendo na Terra.
Podemos designar hoje como o dia em que você se sente um peixe usando máscara de oxigênio para conseguir sobreviver fora d’água. Ou um patinho nascido diferente que vive a questionar, se o cisne é mais bonito mesmo ou só aparenta porque faz parte da maioria.
Já se imaginou sendo vítima de bulling? A pessoinha achincalhada pela turma, que é ridicularizada até as últimas consequências. A que tem seu lanche roubado; que senta no catchup, no alfinete ou no chão porque puxam a cadeira; a que leva a culpa, leva tombo, leva porrada e todos os desaforos para casa. Este é um daqueles dias em que você se sente um ser completamente excluído do meio em que convive.
Sabe aquele dia que você sonha que saiu na rua vestindo camisola, pijama, cueca ou totalmente nu; que as pessoas lhe olham e riem, xingam ou viram a cara, e você só quer encontrar um buraco no chão que tenha tampa (que em lugares de primeiro mundo existem e se chamam bueiros) para se esconder? Este é um desses, só que você não está sonhando.
E o pior (ou melhor, não sei) é que lá no fundo, no âmago da sua origem, na identificação do seu DNA, você sabe que o estranho é o ninho, e não você.
Claro que não é sempre assim, lógico que há dias em que você se sente parte da turma. Aquele dia no qual ri das piadas de mau gosto com tamanha convicção que chega escorrer lágrima dos olhos. Que lê porcarias, baixarias, tiranias, vira ou deleta a página e o assunto sem afetação alguma, e ainda pensa (como é mesmo a frase?): ”Perdoai-lhes senhor....eles são novinhos, ainda aprendem.” Que o vizinho obriga você a ouvir (o dia inteiro e no mais alto volume), Paula Fernandes, Luan Santana, Gusttavo (com dois tês?) Lima, Michel Teló... e por aí vai! E você não só finge não ouvir, como tenta colocar em prática as teorias “gosto não se discute” e “depois da tempestade sempre vem a calmaria.”
Mas não hoje. Hoje você é você com lacre. Inviolado. Este você, que habita o planeta Terra (por engano ou não), mais precisamente o país que se chama Brasil, e que se nega, terminantemente, a aceitar e aplaudir que uma música inteira que se resume em d
elícia, delicia/Assim você me mata/Ai, se eu te pego/Ai, ai, se eu te pego... chegue a primeira posição em países da Europa, rendendo milhões (quantia que um extraterrestre como você nem consegue mensurar) ao intérprete da mesma; se recusando também a cantar, ouvir e achar bonitinha a versão em inglês. 
Entender que um jogador de futebol, além de ditar uma moda horrorosa de cabelo, fature uma quantia ainda mais inimaginável (para você, venusiano) estando com a vida e de toda a família assegurada além da morte, sem ter tido que ralar para conseguir algum diploma ou ser aprovado em algum concurso importante.
Constatar que um bando de Babacas Bombados e Bombadas (salvo alguns venusianos largados no meio deles), que parecem personagens digitais vindos de outras galáxias (de Vênus não!) tem chamado (pela 12ª vez) a atenção do país inteiro para suas babaquices, tornando-se notícia de primeira mão (e grandeza) dos noticiários, revistas, internet e casas de família.
Hoje você acordou com o direito da legitimidade que lhe cabe e se nega, definitivamente, a fazer parte da facção criminosa (para os venusianos, praticar lavagem cerebral na população é considerado crime hediondo) aqui instalada e chamada Rede Globo.
Hoje é uma daqueles dias que você se olha no espelho e se vê inteiro por dentro, e assume-se deliberadamente diferente. Hoje você não se importa em ser julgado, condenado e deportado, até deseja, ardentemente, que lhe mandem de volta para Vênus, de onde nunca deveria ter saído.


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