Mary Pan

 



HÁ muito tempo descobri que dentro de mim vivia outro ser. E que este ser se assemelhava muito ao Peter Pan das histórias infantis.
Para quem não lembra (o que é uma lástima), Peter Pan é aquele garotinho que veste uma roupa verde que parece com a vestimenta de um bailarino clássico; usa uma faquinha na cintura e um chapéu que nunca identifiquei a origem. Pois bem, Peter é um menino que nunca quis crescer.
Em homenagem a ele passei a chamar a outra pessoa com a qual divido este corpo, de Mary Pan. E a Mary que vive em mim, tal qual o personagem da história, nunca cresceu.
Tenho que confessar que, por certo tempo, eu achei que isto fosse caso para psicanalista. O que me fez conviver com Mary numa relação secretíssima.
Mantínhamos, eu e ela, uma convivência conflitante, na qual, na maioria das vezes eu precisava frear os impulsos aventureiros a que ela me impelia. Passei por muitas situações embaraçosas por conta disto. Da vontade de gargalhar nos momentos mais sérios; de sair correndo na rua ou de cantar a todo gogó enquanto fazia compras no supermercado.
Contudo, consegui controlar Mary com muita competência. Ao ponto de sufocá-la em meu íntimo e assassiná-la por repressão, passando, então, a viver uma vida de gente grande, sem lapsos de loucura. Por um bom tempo Mary Pan ficou esquecida dentro de mim para que eu pudesse ser uma universitária promissora, uma mulher exemplar, uma mãe responsável, uma profissional séria. E tudo ia bem, neste ritmo em que os seres normais (nem um pouco bipolares) deveriam viver. té que percebi que, não só eu tinha assassinado Mary Pan, como tinha assinado a minha sentença de morte. Sim, porque ao enterrar o meu pólo infantil nada me restara a não ser envelhecer dia após dia, até o fim.
– MARY PAN, CADÊ VOCÊ?
Tratei de resgatar minha alma caçula e passei a mimá-la desenfreadamente para que ela conseguisse trazer de volta toda a vivacidade que perdi ao abandoná-la.
Hoje eu e Mary vivemos em harmonia. Em momentos os seus lampejos infantis se sobressaem à minha sobriedade, noutros a minha maturidade aquieta suas atitudes tempestivas. Com isso, minha pele ganhou viço. Meus olhos, brilho. Meu corpo, agilidade. Minha mente, sonhos. Minha alma, felicidade. Meu coração, paixão.
Com Mary Pan mais viva do que nunca dentro de mim comecei a perceber que (se não todas) a maioria das pessoas guarda uma criança dentro de si. O que foi um alívio. Isso não só me livrou de um laudo de loucura, como me levou a descobrir muitos coleguinhas de Mary por este mundo.
Quantas vezes você sentiu vontade de largar o trabalho no meio do expediente para caminhar na praia ou não fazer nada? Virar para o lado quando o relógio despertou, e dormir até não ter mais sono? Sair andando sem rumo, juntando as pedrinhas diferentes no chão? Dançar na fila do banco? Cantar no meio de uma reunião? Mostrar a língua pra quem o xingou? Chorar quando se machucou? Pedir colo quando desanimou? Lançar um olhar diferente para alguém que chamou sua atenção? E trocar o telefone sem dar, nem pedir, explicação?
Quantas vezes você ficou olhando para o fogo até os seus olhos arderem? Para lua, procurando ver o dragão de São Jorge? Para o mar, imaginando onde ele vai acabar? Para o sol saindo de dentro d’água, sem sequer se molhar?
Não sei o nome da sua criança, mas sei que existe uma em você. Deixe-a aflorar e ame-a.
Amando-a a manterá viva. Mantendo-a viva, viverá mais. Vivendo mais, terá tempo de descobrir que a felicidade está dentro de você.
Dê a ela o nome que quiser. A minha se chama Mary Pan.

(Do meu livro Na sala de espera.)

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