As obras que Deus não construiu

Pôr do sol no rio Araranguá.

Em minhas mãos a narrativa impecável do autor sobre sua viagem à Europa, no instante em que ele adentra a Basílica de São Marcos situada na apaixonante e apaixonada Veneza.
A realidade com que descreve cada instante captado por seus olhos permite que eu visite com ele a admirável edificação arquitetônica executada para a digníssima paragem de Deus.
Passeio os olhos pela sagrada catedral e desenho em minha mente paredes, colunas, teto, piso ornados por mosaicos de formas geométricas e figuras cuidadosamente arrematadas com o mais puro ouro e bronze, além de uma variedade riquíssima de pedras.
Atrás do altar do santuário descubro o Pala d'Oro, o altar dourado  cravado de jóias. No interior do rico templo encontro o conjunto de guardiões de bronze; os quatro cavalos que por séculos permaneceram no alto da Basílica e que agora repousam silenciosos e estáticos em seu interior. Viajo enfim, através da história que leio, pelo encanto desmesurado feito pelo homem para guardar a Deus, aos santos e aos que a eles adoram.
Mas na exatidão do relato da beleza captada nas dezenas de linhas bem escritas, duvido que em qualquer momento tenha sentido a presença divina. Vasculho então, em retrocesso, o caminho percorrido pela magnífica igreja a fim de encontrar num canto esquecido algo que me faça lembrar do Pai ou do filho que aqui esteve e nada acontece. Guardo com o marcador a página que causou este impasse e fecho o livro.
Cerro os olhos por alguns instantes e o canto ininterrupto das cigarras invade os meus pensamentos. Simultaneamente um quero-quero grita muito próximo a mim. Abro os olhos e vislumbro-o precavido sobrevoando o ninho onde certamente repousam seus filhotes. Estendo o olhar pelo horizonte e me ponho a acompanhar as pequeninas dobras de água sobre o imenso lado. Suaves ondulações que a brisa mansa de verão consegue ocasionar.
Encho os pulmões com o frescor do final da tarde e resolvo mergulhar os pés na água morna. Peixinhos recém-nascidos se assustam com a minha presença e fogem atrapalhados para longe da margem. Gargalhadas infantis quebram o silêncio do momento porque perto dali um grupo de crianças banha-se despreocupadamente.
Como no livro que acabara de ler, percorro em segundos o lugar que me circunda. O lago imenso margeado pela vegetação nativa; o céu que se pinta de vermelho prenunciando o anoitecer; os pássaros e insetos que desfilam indiferentes a mim; as crianças que brincam felizes... E, diferentemente do impasse ocasionado pela página recém-lida, para cada canto que olho reconheço a presença de Deus e do filho seu. Descubro-me envolta por um belíssimo santuário natural.
Um arrepio ligeiro percorre o meu corpo como se o Espírito Santo viesse congratular-me pela descoberta. A inexistência de altar não exige que me ajoelhe. Com a água cobrindo meu corpo até a altura do coração, começo a falar com Deus.

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