Salvo pelo pão


Tem uma coisa que eu devo admitir como um péssimo hábito meu: gostar de ouvir, sem querer, uma conversa alheia. Não a título de fofoca ou com teor de maldade, é que todo escritor precisa de uma fonte, onde mergulhar sua mente e emergir cheio de idéias as quais passa para o papel. Assim, mergulhar em conversas interessantes e pitorescas é meu hobby assumido.
Num dos inesquecíveis mergulhos encontrava-me sentada num restaurante e, muito próximo a mim (para não dizer na mesa colada à minha), os personagens principais que chamarei de Afonso, Inês e Borba.
Os três jantavam calmamente ao que pude observar: filé de peixe, arroz, salada e batatas soutê. Borba o mais velho, que me pareceu ser o pai de Inês e Afonso o mais jovem, o provável namorado. Conversa vai, conversa não vinha... Até que Inês, no furor do entusiasmo feminino, entoou em som agudo e alto a frase fatal:
- É que estamos pensando em morar junto, não é Afonso?
Esqueci de acrescentar que, além de ouvir histórias, adoro estudar gestos e expressões faciais. Foi quando imediatamente olhei para Afonso que apenas olhou para Inês e jogou o queixo timidamente para frente. O que eu supus que seria um sim. E Inês continuou.
- Claro papai que já está tudo combinado. O Afonso vai reformar o apartamento para que eu possa me mudar o mais rápido possível. Não é “Mor”?
Mas, “Mor” não estava ali presente, pelo menos não de espírito. Eu tinha a impressão de que o futuro noivo estava nas nuvens, e algo me dizia que não era numa viagem de sonhos. Afonso não falava. Estava vermelho, mantinha o guardanapo de papel entre o pescoço e o queixo e tinha a tez mais vermelha do que o tomate da salada. Mas Inês não percebia.
- Vamos precisar de uma ajuda, pai. “Tipo”, alguns móveis, porque o Afonso mantém aquele apartamento praticamente nu. Não você “Mor”!! Você anda sempre bem vestido (risada histérica).
Papai Borba, desde o início mantinha-se entretido com a programação da rede Globo e incrivelmente alheio aos acontecimentos. O ministério das famílias adverte: “Televisão em restaurante, além de cafona, poda a interação familiar.”
Enquanto isso, “Mor” passava do vermelho arroxeado para o verde avermelhado, ao mesmo tempo em que lágrimas lhe saltavam dos olhos esbugalhados. E Inês continuava.
- Então papai, o que você diz?
- Hã?! Ah, se vocês têm certeza que é isto que desejam.
- Claro que temos! Afonso está aqui para lhe comunicar.
Pensei em me meter na conversa e dar um soco nas costas de Afonso, mas apesar do meu grau de entendimento do que estava se passando, a etiqueta manda não se meter na conversa alheia (no meu caso, apenas ouvi-la). Para o meu alívio, pela primeira vez Inês presta atenção no futuro marido.
- Afonso, você não vai dizer nada? Estou aqui, falando e você aí com esta cara de pão dormido.
Sem querer, Inês falara a palavra mágica. Afonso voa sobre a cesta de pão que havia sido servido como entrada e tira um substancial pedaço do miolo empurrando-o goela abaixo. Os olhos marejados de lágrimas se espremeram de desconforto enquanto a espinha de peixe descia pela traquéia. Salvo pelo pão, Afonso dá algumas tossidas e volta a respirar normalmente e responde numa voz indefinida.
- Claro querida é isto o que desejamos.
Inês sorri melosa e toma as mãos de Afonso nas suas. Borba vibra ao ver o gol do flamengo explodir na rede da “telinha”. Afonso olha desconfiado para o filé de peixe deitado no prato.
Eu, satisfeita com “gran finale”, aos gourmets do mundo recomendo: assim com todo barco deve possuir barcos salva-vidas, todo peixe deve vir acompanhado de uma cestinha de pães.

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