Caça-fantasmas

MUITO comum, quando criança, enfiar a cabeça embaixo das cobertas para afugentar os fantasmas que me ameaçavam. Invariavelmente eles apareciam à noite e eu tinha certeza de que, se a minha respiração transparecesse no movimento do cobertor eles iriam perceber e me capturar.
Com isso quase morria asfixiada antes de pegar no sono, e adentrar num mundo onde os fantasmas não existiam.
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A gente cresce e os fantasmas noturnos vão desaparecendo do nosso cenário de medos. Entretanto os medos vão aumentando e os fantasmas passam a ser diurnos. O pior de tudo é ser grandinha o suficiente para saber que colocar a cabeça embaixo das cobertas não vai resolver nada. Morrer por asfixia, quem sabe?
À medida em que o mundo evolui, as gerações de fantasmas vêm se desenvolvendo e variando a origem da sua estirpe. A modernidade influencia os medos e os diversifica, assim como os prolifera. Ao mesmo tempo em que, nos dias de hoje os mecanismos identificadores de monstros psíquicos estão cada vez mais infalíveis, mais temos consciência da nossa suscetibilidade.
Num mundo onde se busca a normalidade, como conviver com a idéia de que somos vulneráveis, assombrados pelas nossas inseguranças? Como podemos demonstrar as nossas fraquezas sem correr o risco de sermos avaliados, diagnosticados, medicados? Como assumirmos a nossa condição de seres “fora da casinha”?
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“Tenho medo dos assombros desta vida”. Isto já era cantando e em prosa e verso, desde a confirmação da existência de seres munidos de coração e alma. Tememos as dores das perdas, das paixões, dos amores. Tememos a insegurança das mudanças, dos projetos, do futuro. Tememos a verdade do que fomos, do que somos, do que queremos, do que os outros querem. Tememos os contatos com o nosso íntimo que nos mostram tão estranhos a nós mesmos.
Todavia, quem disse que existir é caminhar numa estrada florida, povoada por bichinhos encantadores? Creio que as canções de ninar protagonizadas pelo bicho- papão, cuca, boi da cara preta e outros monstrinhos, signifiquem realmente “durma e entre no mundo dos sonhos.Mas não esqueça que o bicho está lá fora, e você tem que estar preparado para enfrentá-lo. Não adianta enfiar a cabeça embaixo desta cobertinha quente, não. Ele sabe que você está respirando.”
Se tivéssemos interpretado direitinho estas letras quando criança, aprenderíamos desde cedo que se ficar o bicho come, mas se correr o bicho também pega. Que a única saída é matar o bicho. E nisto nenhuma receita vai nos ajudar se não colocarmos a cabeça para fora da coberta e gritar  'BUUUU!' antes que ele nos assuste.

( Esta crônica faz parte do meu livro Na sala de espera que será publicado em breve)

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