Cinderela do terceiro milênio


OLHOU-SE no espelho antes de se atirar sob a cascata de água morna do chuveiro. Mirou os cabelos castanhos caindo desalinhados até abaixo dos seios e encarou os próprios olhos emoldurados pelo sombreado das olheiras. O olhar refletido no espelho era de puro cansaço. Precisava dar um jeito naquela imagem moribunda, se quisesse parecer viva na grande festa.
...
Deixou a água despencar sobre si. Lavou os cabelos com o xampu sem sal recém-comprado, e em seguida massageou-o com o condicionador de queratina que, conforme prometia no rótulo, devolveria o brilho perdido em meio à poluição da rua daquele dia estafante.
Desligou o chuveiro um pouco mais revigorada e pronta para iniciar a transformação.
...
Creme de morango com champanhe para o corpo. Loção tônica para o rosto. “Leave in” nos cabelos úmidos. Hidratante “pós-loção tônica” para o rosto. Secador, escova, chapinha, touca... Secou o suor que escorria entre os seios e aproximou o rosto do espelho. Corretivo, base, pó, sombra, delineador,lápis, blush, gloss... Depois de mais de uma hora o resultado começava a aparecer.
...
Aproximou-se da cama e observou os quatro vestidos estendidos sobre ela. Suspirou fundo e tentou adivinhar qual das quatro cores lhe traria mais sorte naquela noite. Preto garantiria classe. Vermelho, sensualidade. O azul sugeriria mistério.Dourado, glamour. Centenas intermináveis de segundos depois, viu-se envolta pelo cetim vermelho do tomara-que-caia descendo até os sapatos prateados. Queria ficar irresistível! Sabia que ele estaria na festa.
...
Maneou a cabeça soltando os cabelos lisos e brilhantes. Prendeu os brincos de strass e enfiou na mão o conjunto de pulseiras do mesmo material. Esborrifou o perfume francês favorito nos pontos estratégicos. Lançou o celular para dentro da bolsa prata. Analisou uma vez mais a imagem projetada no espelho e sorrio satisfeita. Ficara linda! Apanhou a chave do carro e partiu.
...
Subiu os degraus que levavam até o grande salão sentindo- se tensa e ao mesmo tempo ansiosa. Avistou um grupo de amigas ao qual se uniu trocando, efusivamente, beijinhos e elogios. O garçom lhe ofereceu um drinque. Os olhos passaram a procurar em volta. O sorriso tenso, o coração acelerado...
A bebida esquenta, o corpo relaxa. A música envolve, o corpo dança. Os olhos procuram em volta. E encontram.
...
No lado oposto do salão ela o reconhece. O causador de sua insônia. O protagonista de seus sonhos. O dono do beijo doce que lhe roubou a paz levando junto o seu coração. O corpo para! O peito prende a golfada de ar que lhe machuca o estômago. Entre dezenas de rostos sorridentes seus olhos distinguem a cena que jamais desejaria ver. Ele está ali!... Beijando outra mulher.
A dor golpeia-lhe os sentidos. O relógio avisa que ainda é cedo, mas para ela é hora de partir. Na fuga desesperada tropeça num degrau da longa escadaria e vê seu sapato rolar até a calçada. Levanta-se torpe de humilhação.
...
O “príncipe” continua na festa e nem sequer imagina que existe um sapato perdido, um pé descalço e um coração partido. Recolhe o sapato e calça o pé dolorido. Entra no carro e grita toda a dor.
Naquela noite, entre lágrimas e soluços, ela descobre que, assim como fadas madrinhas não surgem do nada para ajudar as cinderelas apaixonadas, não é preciso ser uma bruxa para transformar (da noite para o dia) príncipes adoráveis em abomináveis anfíbios.
“Essa é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com acontecimentos reais terá sido mera coincidência... Ou, não”.

(Esta crônica faz parte do meu livro Na Sala de Espera que será lançado em breve.)

  • Digg
  • Del.icio.us
  • StumbleUpon
  • Reddit
  • RSS

0 comentários:

Postar um comentário