Discutindo a presunção





ALGUMAS coisas caem bem apenas no papel. Ficam bonitinhas em artigos, revistas, livros... Mas quando saltam das páginas para aterrissarem na vida real ficam enviesadas, tortas, perrengues.
Já tentou discutir a relação?
Não me refiro a brigar, combater ou guerrear sobre pontos de vista e opiniões. Falo em argumentar, ponderar, enumerar uma a uma as diferenças (pacificamente) ao companheiro ou à companheira, numa boa. Tipo uma conversa civilizada, onde Fulana diz ao Cicrano tudo o que vem guardando durante dias e dias da entediante relação. Um desabafo sincero, onde o Cicrano informa a Fulana o número de sapos (e pererecas) que vem engolindo nos aborrecidos dias da relação.
Estou querendo mencionar uma conversa incolor, inodora, insípida, cristalina. Um strip-tease da alma, no qual você vai despindo-se lentamente ao som descompassado do coração.
Já tentou algo parecido?
Deixe-me adivinhar: teve que se cobrir rapidinho, vestindo cada sentimento de volta, antes que o frio da indignação do parceiro (ou da parceira) congelasse-lhe alma e coração?
A verdade nua e crua é esta! Ninguém, por mais politizado, antenado, espiritualizado que seja, gosta de ouvir falar sobre os fatos verídicos de sua pessoa, que a fazem ser uma (não tão boazinha) pessoa normal. Ou melhor, seria dizer, anormal?
Na real, anormal neste mundo (na presente dimensão) é ser perfeito!
Normal é gente que erra; que pisa na bola, na jaca, na casca da banana. Normal é gente que escorrega e leva o outro de arrasto com ela. Normal é quem perde a calma, a compostura, à estribeira, e já não se acha no meio de toda confusão. Normal é quem (não sendo barata) sente o sangue subir à cabeça antes de soltar um palavrão. Normal é esta raça que povoa o planeta e que se desequilibra de vez em quando, apesar de toda força da gravidade. E isto nada tem de grave!
UFA! Que alívio este parágrafo causou!
Agora sim. Depois de admitir todas as partículas vencidas do nosso eu imperfeito, dá para pensar em sentar e discutir qualquer relação.
Desenhando: enquanto um se achar o rei da bolacha e o outro a última cocada do pacote, os relacionamentos deformarão, perderão as tiras e terão mau cheiro, feito legítimas Ipanemas.
Ou seja, chega de fingir!
A gente erra sim! Muitas vezes somos um fulminante pontapé na parte frágil do parceiro ou parceira e queremos posar de delicadas bailarinas ou bailarinos. A gente chuta sim! E haja saco!
Esteja preparado. Puxe a cadeira, a poltrona, o divã ou simplesmente se jogue na almofada, pois mais dia ou menos dia, você vai ser convidado a discutir a relação. Então, relaxe. Desça da cobertura celestial (na qual pensa) que habita e permita-se alguns instantes de pés no chão.
Ouça, ouça, ouça. E quando achar que já ouviu tudo: OUÇA!
Talvez você não concorde com tudo, talvez concorde em partes, talvez não concorde com nada. O que importa é você ter parado e admitido que o assunto precisasse ser posto em pauta. Ter silenciado para escutar a parte afetada. O que conta realmente não é a sentença proferida, é a culpa anunciada.
Como? Vai querer dizer agora que não teve nada a ver com o caso?
Pegue o elevador. Aperte no zero. Desça outra vez.
Precisamos discutir a sua presunção.

           (Esta crônica faz parte do meu livro Na sala de espera).

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