Logo tu

tu

Todo domingo acontece um baile em um clube próximo da minha casa. A famosa domingueira.
Nunca entendi como as pessoas conseguem sair para dançar no domingo à noite e trabalhar no dia seguinte. Mas, como gosto e vida dos outros estão no rol das coisas que prefiro não discutir, ouço calada e passiva o repertório sertanejo que ultrapassa as grades do jardim, as venezianas da janela e invade a minha casa sem que eu possa, sequer, mover o botão do volume para baixo.
E, além do “playlist” que não escolhi, ouço também, entre um segundo e outro de silêncio, as lamúrias de alguns domingueiros que, depois do terceiro ou quarto copo, fazem da minha calçada um confessionário.
“Logo tu, que é a pessoa que eu mais gosto nesta vida” chorava a mulher, da qual eu não via o rosto. E repetia, entre grunhidos e soluços, o mantra dos injustiçados, renegados e traídos. Também não vi o rosto, nem ouvi a voz do réu acusado pelo crime do coração violentado, contudo podia jurar que o safado estava do lado da pobre vítima surdo, mudo e louco para voltar ao salão e aos braços da causadora de toda tragédia.
A cena que não vi, apenas ouvi, durou cerca de trinta minutos e depois silenciou. Não faço a mínima idéia do que aconteceu ao casal. Só sei que deixaram aquela frase desesperada dentro do meu quarto, mais precisamente martelando dentro da minha mente, despertando o meu sono iniciado.
 “Logo tu, que é a pessoa que eu mais gosto nesta vida!”
Ironicamente, as pessoas que mais gostamos são as que mais nos farão sofrer. Nenhuma dor é maior do que a causada pelos legítimos possuidores dos nossos mais caros sentimentos. Claro que o cara mal encarado da agência bancária, ao negar aquele empréstimo tão aguardado, arruinou o seu dia e as próximas semanas. Lógico que o ladrão que invadiu sua privacidade e a sua casa, levando a maior parte dos seus eletrodomésticos e jóias, causou um rombo imenso em seus sentimentos. Certamente você irá chorar ao sair da agência bancária e ao se deparar com sua casa violada; qualquer um choraria. Mas será um pranto de raiva e não de dor. Não terá a mesma entonação da moça da minha calçada que estava sendo emocionalmente esfaqueada pelo objeto amado. Podemos ser gravemente feridos pelas pessoas que vivem nas redondezas e, até, bem distantes, do nosso coração, mas nada é tão letal quanto o ferimento causado por quem mora dentro dele.
E já que perdera o sono, tratei de criar um jeito das pessoas se precaverem de tais estragos emocionais. Uma espécie de contrato entre os amantíssimos inquilinos, antes de instalarem-se de malas, cuia e todo o resto dentro do coração um do outro. Coisa do tipo:
...
O locador supraqualificado, e o locatário, também supraqualificado, resolvem ajustar a locação do órgão retro descrito (coração), que ora contrataram, sob as cláusulas e condições seguintes:
I – A locação vigerá sem período pré-determinado, podendo o prazo se estender por toda a vida e além dela, se assim o desejarem.
 II – O valor da locação deverá ser pago mensalmente; semanalmente; diariamente; “minutamente”; “segundamente”; conforme o desejo do locador e a necessidade do locatário, com base no índice dos seguintes sentimentos: respeito, admiração, cumplicidade, carinho e amor.
 III – O locador garante que o órgão encontra-se limpo e desocupado, em perfeito estado de conservação emocional e adaptável a toda e qualquer necessidade e exclusivamente disponível para o bem estar e felicidade do locatário.
 IV – É de responsabilidade do locatário, preservar as condições atuais do órgão contratado, prestando cuidados e melhorias que o torne ainda mais valorizado e, automaticamente, feliz.
 V - É estritamente proibido ao locatário sublocar o órgão contratado à grosseria; mentira; traição; indiferença; desprezo; e a todo e qualquer usuário que avariar as condições atuais do mesmo. Sob pena (do juízo celestial) de ficar pelo resto de seus dias desabrigado, tendo que mendigar guarida em albergues baratos, sujos e desprovidos de qualquer tipo de sentimento.
ADENDO - Se em meio ao período vigente desta locação, algum dos envolvidos não conseguir cumprir com as exigências estabelecidas, deverá propor a rescisão do contrato, antes de causar qualquer dano ou prejuízo ao órgão contratado. Cabendo à outra parte aceitar a anulação sem raiva, ressentimento ou qualquer tipo de sentimento que não seja, unicamente, tristeza.
Desta forma, se for da vontade e interesse de ambos, locatário e locador, seguir restritamente as cláusulas acima citadas, que selem este contrato com um longo beijo e muita boa sorte.
...
Imagine o alívio que se seguiria depois deste beijo. Ambos se relacionando com um termo de salvaguarda de seus corações, usufruindo o amor com proteção. Sentimentalmente corretos!
Então, que tal imprimir imediatamente a minha idéia de amor seguro e correr até o cartório mais próximo de mãos dadas com o seu locatário e, apaixonadamente, reconhecerem firma?
Acha que serão taxados de loucos? E o que dizer, então, de quem abre as portas do coração e põe uma pessoa a morar lá dentro, sem garantia alguma?

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