Embriaguez




Durante algum tempo acompanhei, através da internet, o caso de amor de um escritor gaúcho que muito admiro.  Chamo caso, por achar curiosa a forma como, sem reservas, ele expunha o amor por sua mulher em seus escritos; ora em forma de crônica, ora em forma de poesia; ora em escancarada declaração de amor em outdoor.
Admirava-me todos os dias com cada leitura emocionante de seus rompantes explosivos de amor. Paixão desenfreada, arrebatada, sem rodeios, nem cortinas. Amor na calçada para quem quisesse ver e ler, para quem  suspirasse e desejasse ter um igual. Só poderia ser coisa de artista.
Mas quem não sonha com um amor assim, numa época marcada por relacionamentos digitais, impessoais, furtivos, escondidos, escamoteados, confusos, bandidos, culpados? Quem  não deseja ser amado aos quatro ventos e a toda velocidade? Que mulher não deseja ser declarada a musa de alguém pelas ruas da cidade? Eu, certamente, sim.
Por conta disto, persegui  a paixão do admirável poeta como quem persegue o amor até os vãos escuros da rua pecadora das meretrizes, só para se certificar que ele sobreviveu à volúpia do prazer casual.
Senti-me cúmplice a cada gota reveladora daquela embriaguez, embriagando me, igualmente, com alto teor sentimental de suas palavras. Regojizei-me vendo  um coração masculino pulsar no ritmo descompassado, compulsivo e louco, tão próprio das fêmeas. Torci na platéia muda, mas entusiasta, para que houvesse o final feliz para aquela dança, e que não se transformasse  em jogo o que nasceu romance.
Porém, dias atrás, li um pedido desesperado do escritor apaixonado  para que sua amada voltasse. Confusa, imaginei que ela estivesse viajando e, à mercê da distância, desesperada de saudade também.
Mas, à medida em que os dias foram passando, os pedidos de volta foram virando súplica. Até que, sem pudor nem constrangimento, o poeta expurgou toda a sua dor digitalmente. Para que todos lessem e se compadecessem  Para que eu lesse, mas não compreendesse. Chorou, via internet, a dor da perda da musa amada. Ela o deixara.
Num impulso de curiosidade tentei encontrar pistas que indicassem o fim. Quis achar nas últimas pegadas o amor afundando. Desejei descobrir o engano, a fraqueza assassina dos amores fortes. Pensei ser mais uma daquelas brincadeiras do tempo, que muda tudo de lugar e faz sofrer, mas depois permite que tudo volte a ser como era.
Mas não. Não adiantava eu expirar a esperança boca a boca no amante moribundo,  tampouco soquear-lhe o peito até despertar o coração. O amor havia morrido, e a ele só restava sepultá-lo sob a lápide com a inscrição: “Mais um caso sem solução”.
Depois de dias e dias de admiração, de ter me sentido tão intensa com a sua tranquilidade em assumir-se apaixonado,  de me considerar tão normal lendo as suas loucuras, de ficar extasiada com o amor que era dela e não meu... precisava enterrar minha perda também.  Parei de acompanhar o diário digital do artista.
Numa mistura de culposidade e covardia deixei-me levar pela dor que não era minha. Encontro-me embriagada. Sem equilíbrio  nem entusiasmo, de acreditar no final feliz para estas danças que acabam transformando em jogo o romance, ergo um brinde póstumo:
Tim-tim, Carpinejar! Ao amor falsificado! E que Deus nos cure das ressacas.

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Presente em mim



Sempre que o dia dos pais se aproxima penso não haver mais nada no que me inspirar, já que o meu pai partiu há muito tempo. E que,talvez, devesse apenas seguir a tradição de visitá-lo em seu jazigo vazio e frio para enchê-lo de flores perfumadas, coloridas e sem sentido.
Não lembro de meu pai gostar muito de flores. Ele gostava de bichos. Então, quem sabe devesse ornar sua sepultura com pássaros ou, ainda, colocar um cachorro de guarda, pois creio que esta seria a verdadeira forma de deixá-lo feliz.
Como isto não só não seria possível, como me faria extrapolar a escala da loucura permitida, me abstenho da visita compulsória ao mausoléu da família no meu domingo sem pai. Não antes de tentar convencer , pacientemente, a minha mãe de que ele está em qualquer outro lugar menos lá, no endereço fixo daquele condomínio fúnebre.
“Meu pai está dentro de mim”. Não é somente a ela que convenço.  A prova não está na inspiração que acabei tendo e que é apenas mais uma, das tantas que ele me presenteou. A prova sou eu. A composição de dois seres que continuarão vivos enquanto eu viver.
Admito que nunca havia pensado desta forma.  A ignorância ou a insensibilidade me faziam achar que aquele espermatozoide  que se uniu ao óvulo para me gerar, seria mero agente da concepção humana, neste caso específico, de mim. A pretensão me fez crer que o meu velho,  que partiu de cabelos brancos a mando de um coração cansado, não habitaria o condomínio sem vida e nem outro lugar qualquer deste plano terrestre. Que, simplesmente, evaporaria. Cheguei, até, induzindo a imaginação, visualizá-lo sentado em um banco embaçado de um jardim fluídico de outro plano, que reluto em chamar de céu, mas que sugere  algum sentido aos desaparecimentos instantâneos e dolorosos...para quem fica.
Descobrir meu pai vivendo em mim é algo que ultrapassa qualquer improbabilidade factual  e que, contrariando os princípios da vaidade humana,  não sinto a menor necessidade de provar.
Poderia insistir na herança genética que ele depositou em mim e acho que, desta maneira,  conseguiria tornar verossímil minha constatação. Poderia escrever um conto no qual relato a companhia de um anjo e que, numa noite de insônia, um par de olhos brilhando próximos aos meus  me fazem crer que o anjo era o meu pai. Ninguém acreditaria, pois contos não são feitos para crer. Tampouco alguém  descobriria o fato de eu ter fantasiado a verdade num conto de mentira.
Ontem, por caso, se fosse crer que o acaso existe,  abri um livro em que alguém perguntava com que os moradores do céu sentiam-se felizes ao  lembrarem da Terra. Sem precisar forçar a imaginação ouvi meu pai dizendo: “Não são as flores que me fazem feliz.”
E, desta forma, ele me inspirou mais uma crônica, das muitas que ainda lhe escreverei,  e  que é a verdadeira forma que tenho  de alegrá-lo, já que não posso enfeitar com pássaros, nem colocar um cachorro na porta de onde ele nunca esteve, pois vive dentro de mim.

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Monólogo da alma





O meu corpo e a minha alma tiveram sua relação estremecida nos últimos dias. Me dei conta disto no momento em que  vi um corredor passar por mim na rua e senti aquela inveja incontrolável por não poder vestir o short, calçar os tênis e fazer o mesmo. Minha alma gritava “corra”, mas meu corpo respondia “não posso”.
Estive doente. E nestes poucos dias, que pareceram meses, senti  a parte intocável de mim - aquela que ninguém vê, pouquíssimos percebem, a maioria desacredita,  chamam de alma e eu chamo de eu – impotente dentro de um corpo lesado. 
Um leão enjaulado, um pássaro engaiolado, um gato preso pela corrente.Qualquer uma destas cenas caberia perfeitamente para  ilustrar o sentimento de impotência que me acometeu. Meu corpo era a jaula, a gaiola, a corrente, prendendo a mim.
Aproveitei o ensejo, porque aprendi que os piores momentos podem conter as melhores oportunidades, e encarei a minha parte sã. Aquela que fica além do corpo ou dentro dele, se preferirem.
Olhei minha alma com a calma dos seres incapazes de correr. Com todo o tempo que não teria se pudesse ter saído correndo atrás daquele atleta na rua. E sou capaz de jurar que ela sorria para mim, aliás, tenho quase certeza de que ela ria de mim. Diretamente do meu corpo prostrado pela dor e enebriado pelo antibiótico eu vi o sarcasmo da minha  alma, enquanto apontava com seu dedo invisível e falava com sua voz inaudível:  “Eu e você somos uma só, e não estamos doente. Ele está, mas ele é apenas o corpo que nos guarda.”
Eu sei que os componentes químicos contidos nos medicamentos são capazes de alterar o nosso estado de consciência, mas eu não estava delirando, pelo contrário,  fiquei consciente de mim exatamente no período em que o corpo que me carrega precisou parar.
Incrível como nos confundimos! Ou melhor, como fundimos corpo e alma, corpo e nós e acabamos sintetizando tudo fisicamente. Foi preciso a minha parte física, que há muito não adoecia, enfraquecer, para que o meu eu, a minha alma, o que eu sou verdadeiramente, despontasse.
É um tanto quanto estranho fazer esta dissociação,  talvez por isto evitemos fazê-la por boa parte da vida. É tão mais normal e, consequentemente, fácil lidarmos com o nosso eu físico. As nossas imperfeições estéticas, nossos defeitos congênitos, nossas inadequações aparentes, tiramos de letra. E o que não tiramos, a ciência e os procedimentos cirúrgicos ajudam a eliminar.
Agora, lidar com a alma -  esta voz que fala em nossos ouvidos e que sabemos não ser uma gravação implantada no cérebro, através de um chip que contém gravado todos os arquivos da nossa existência desde o instante da fecundação -  não é tão fácil!
Fácil  é dizer que tenho cabelos e olhos de  tais cores;  visto tamanho X e calço tamanho Y;  gosto de comer isto e não gosto daquilo;  já fiz tal coisa, exerço outra, mas ainda quero fazer algo bem diferente.
Difícil é entender o que não vejo;  satisfazer o que sinto;  realizar o que desejo ;  explicar o que ninguém vê;  ser o que realmente sou e chamam alma.
Naquele instante luminoso, em que a minha alma brigava com o meu corpo para calçar os tênis e sair em disparada, tive um sobressalto. Um temor imenso percorreu meu corpo já febril e congelou a corredora inquieta:  E se, ao chegar a morte para levar o meu corpo, a minha alma quiser correr na rua? Se o desejo de vestir o short e calçar os tênis não tiver morrido? Se eu ainda estiver viva? Quem me convencerá a morrer? Quem me tomará pelas mãos e me levará a correr em outra pista que desconheço? 


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Seres Invernais




Tenho os meus motivos para não gostar do inverno. Por exemplo, estar neste exato momento com quilos de cobertores sobre as minhas pernas, enquanto as minhas mãos congeladas dançam sobre o teclado tentando, em vão, se aquecer. 
Ter de sair, corajosamente, debaixo das cobertas diretamente para o frio das sete da manhã e vestir camadas e mais camadas de tecido, até o meu corpo virar um caroço imóvel, mas quente. Ver minhas mãos duras e  murchas, após lavar a pilha de louça com a água que sai, naturalmente, refrigerada da torneira e ter as mangas do casaco de lã encharcadas. Ter de tomar banho em água escaldante e depois tiritar de frio ao me secar no meu  banheiro que parece estar localizado em algum bairro do Polo Norte. Deslizar o creme frio sobre minhas canelas ressecadas e esbranquiçadas e depois vestir pijama, roupão, polaina, pantufa e me sentir o próprio palhaço Bozo, só que na frente da TV.
Tenho atenuantes físicos que embasam a minha ojeriza pelo inverno: pés e bumbum gelados que me tornam tão irritada quanto em surto de TPM; lábios craquelados;  nariz com goteira; amígdalas em constante manifestação conflituosa.
Enfim, preencheria facilmente várias folhas A4 com justificativas que me fazem desejar ardentemente regressar ao outono, mas de nada adiantaria.Para chegar aos jardins floridos da primavera é preciso passar pelos dias cinzas do inverno.
Gosto de brincar, assim, de coisas e vida, pessoas e estações  e comparo este período gelado,  o qual sou obrigada a transcorrer, com as pessoas, igualmente, escuras e frias com as quais preciso conviver. 
Confesso que preferiria comandar esta brincadeira de gente. Gostaria de, com dedo em riste, apontar para alguns narizes imponentes e dizer em alto,forte, mas em educado tom: “ Você tá fora! Não brinca mais comigo”.
Lógico que já fiz isto, mas não antes de ter sentido todos os efeitos colaterais da frieza impiedosa  que emana do coração de alguns seres que se dizem humanos. Aliás, não existe nada que congele mais os sentimentos até quebrá-los irreparavelmente, do que atitudes humanas de quem consegue ser mais árido do que o próprio inverno.
De tanto brincar de coisas e pessoas, estações e vida, descobri que o mundo está cheio de gente congelante, as quais é preciso ter muita coragem para encarar, seja às sete da manhã; seja ao meio dia. Pouco importa em que altura esteja o sol, elas simplesmente esfriarão até a última fagulha de calor que existe em você. Pessoas que com a frieza de suas palavras conseguem fazer  tremer embaixo de um sol de quarenta graus.
Existem pessoas, das quais se precisa proteger, que tentarão de todas as formas transformar você num caroço imóvel, embora quente. Pessoas que, pela insensibilidade, farão você murchar e se sentir o próprio palhaço Bozo na frente do espelho.
Tenho atenuantes físicos que justificam meu pavor por estes seres invernais: pés, bumbum e todo o resto do corpo em que meu sangue passeia, congelados; lábios mordidos; nariz arfante; amígdalas inchadas pela  vontade  de mandar o tipinho gélido  para o quinto dos infernos, que é para derreter de vez.
Escreveria um livro inteiro com motivos que me fazem querer desviar o meu caminho das pessoas escuras e frias, mas de nada adiantaria. Para colher a flor no alto da montanha é preciso galgar as pedras que ficam embaixo.
Infeliz ou felizmente, como as estações, existem pessoas que transformam coisas em nossas vidas  e outras fazem das nossas vidas uma coisa. Cabe a nós conseguir passar por  todas elas sem perder a sensibilidade de ser feliz na primavera.


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Amar gay



Das coisas que mais gosto de fazer,dançar, sem dúvida, está entre os primeiros itens da lista . Infelizmente os ritmos que estão na moda não me fazem a cabeça e, automaticamente, não me animam os pés.
Noite destas, entretanto, quando o meu corpo todo pedia para ser sacudido numa pista de dança, alguém sugeriu um local onde rolava o estilo de música que gosto. Não pensei duas vezes, saí para dançar numa boate gay.
Imagino que alguns olhos que acabaram de ler o parágrafo acima tenham se esbugalhado, tanto quanto outros que não conseguiram disfarçar o susto, ao ouvirem-me dizer que dancei  num sábado à noite numa balada gay.
Mas esta é uma equação pra lá de simples, pelo menos para mim. A minha escolha sexual não determina que eu julgue e condene a predileção dos que (dizem) são diferentes de mim. Mas minha preferência cultural, e neste caso eu me refiro à música, determina que eu busque ouvir e dançar ritmos e sons que me agradem.  O DJ da boate gay não só satisfez o meu gosto musical, como me fez suar.
Não sou gay e não ponho em risco a minha preferência sexual (dita normal), por ter dançado no meio de homossexuais. Pelo contrário, a única coisa que poderia mudar e efetivamente mudou em mim, naquela noite, foi o fato de o meu corpo ter ido dormir satisfeito e, automaticamente,  o meu coração pulsantemente mais feliz.
O que não aconteceu na noite em que cometi o despautério de (tentar) dançar numa balada hétero do momento. Todo mundo merece passar pela situação de “o que é que eu estou fazendo aqui?”, que é para nunca mais cometer o mesmo erro. “Camaro amarelo” e “eu quero tchu, eu quero tcha” protagonizaram os meus pesadelos naquela noite, depois de ter fugido correndo de lá.
Mas deixando a música de lado, enquanto luzes coloridas focavam os rostos felizes dos pares do mesmo sexo, me perguntei  no que aqueles casais (ditos anormais) eram diferentes daqueles  (ditos normais)da balada sertaneja.  Deixando a questão sexual de lado, garanto que vi mais sentimento ali naquele recinto censurado do que nas coreografias porno sensuais que vi na balada socialmente correta. Sou capaz de afirmar, até,  que enxerguei o amor, do mais puro tipo de que o amor é feito, entre aqueles seres discriminados, enquanto na fatídica noite de “aí se eu te pego” vi somente a azaração, no sentido mais superficial do que seja querer alguém apenas por sexo.
E agora, deixando tudo isto de lado, sinto que um sentimentalismo puro sai dos corações dos homossexuais. Uma sensibilidade aguçada, típica de quem sofre o poder destrutivo da discriminação. Um romantismo raro, quase utópico,  de quem precisa acreditar que o amor é cura. Uma bondade espontânea, quase ingênua, de quem necessita provar que não é anômalo. Uma força tremenda, de quem precisa lutar para ser feliz. Uma inteligência sagaz, de quem sabe que existe mais mistério entre o céu e a Terra do que supõe qualquer filosofia.
Então, não tentem me convencer sobre a anormalidade do que quer que seja neste mundo em que a palavra NORMAL virou rótulo de produto adulterado. Não me olhem como se eu tivesse perdido o senso, o tino ou o status, por não estar nem aí ao ver duas pessoas do mesmo sexo se amando. Preocupo-me sim, quando vejo gente traindo, mentindo, humilhando, maltratando,roubando, matando. 
Quando vejo amor de todas as formas e maneiras que o amor pode, tão lindamente, se mostrar, eu vejo Deus!
Então não me digam que Deus condena os meus amigos e amados homossexuais que não escolheram ser como são, pois nasceram como Ele quis que nascessem. 
Não inventem leis  que os tornem  doentes diante uma sociedade patologicamente insana no que diz respeito a moral, valor e conduta.
Não me falem  em nome de um Deus que não é o meu, pois a única lei que o meu Deus prega é do amor entre os homens. E em nenhum momento ele determinou que deveria ser ,exclusivamente, entre sexos opostos.


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O despertar da pátria amada



Ao nascer no Brasil criaram-se laços inseparáveis entre mim e a pátria que passei a  amar, instintivamente, como um ventre do qual nasci. Sem que nenhuma gota de sangue nos ligasse, o Brasil tornaria-se parte de mim e eu parte dele, por toda a minha vida.
Contudo, derrotadamente, há algum tempo  larguei o Brasil de mão. Assim, como quem se afasta de uma mãe, mesmo amando-a, por não mais conseguir conviver com seu jeito e costumes. Como quem desiste de  resgatar um ser amado que se perdeu no meio do caminho.
Segui em frente minha caminhada predestinada a ser uma brasileira tentando ignorar tudo o que, ao longo deste trajeto, me fez sentir vontade de sentar, chorar e desistir. Fingindo não me afetar com as injustiças causadas por aquela que aprendi a chamar de minha pátria mãe gentil. Sofrendo por ter de admitir que algo havia saído errado no berço em que não escolhi nascer, mas do qual  preferiria me orgulhar.
Foi duro ver meu país ser subjugado, ironizado e discriminado lá fora. Afinal, um país não é simples  traçado  geográfico inserido no globo terrestre. O Brasil sou eu e todas as outras pessoas que  atribuem vida a ele.A vergonha era de mim, o fiasco era eu, o fracasso era meu, a tristeza era minha.
Ver o monstro da corrupção crescendo e prostituindo a mãe que deveria ser  justa e gentil sem que eu pudesse fazer nada, foi demais para mim. Perdi as forças de levantar a bandeira que estampa a riqueza que foi roubada, a beleza que foi desfigurada, o orgulho que foi rasgado.
Sem orgulho de ser brasileira me tornei uma filha apática e distante, vendo minha mãe se perder, dia a dia, pela televisão. Sentada sobre a dura estrutura de minha vida honesta vi o mal estuprando a minha pátria querida, enquanto gozava o êxtase diante de uma platéia entorpecida.
Vi policiais virando bandidos. Vi bandidos virando gente importante e rica. Vi a droga  invadindo  casas e aniquilando famílias.  Vi pessoas sem casa morrendo nas ruas. Vi pobres perecendo nas filas, dentro dos hospitais. Vi crianças crescendo por todos os lados, sem educação. Vi a moral ser assassinada em bailes funk. Vi a cultura ser torturada em alto-falantes. Vi o mal  fazendo o discurso em palanque. Vi o demônio sair das urnas para assumir o poder.
De ouvidos atentos, olhos inconformados, boca calada, minhas mãos atadas não puderam mais versar sobre a minha mãe estuprada. Até hoje.
Hoje eu volto a escrever sobre o Brasil. O Brasil que acordou do sono da inconsciência e grita, com milhares de vozes, por socorro. Hoje levanto a bandeira,  há muito  arriada no peito, e cubro de esperança as imagens distorcidas pelas lentes aliciadoras da televisão. 
Hoje minhas mãos se soltam das amarras da impotência para, trêmulas de emoção, registrarem o momento em que minha pátria amada despertou, cheia de promessa de voltar a ser o que um dia sonhei que ela fosse.
Hoje eu me encho de coragem e peço àqueles que não compreendem, nem ouvem a voz que clama  por R$ 0,20, que se olhem no espelho e, se não tiverem orelhas de burro, calculem o que poderia ter sido feito com cada centavo roubado por anos a fio  dos cidadãos honestos e sofridos  deste país.
Hoje eu quero invadir os portões do paraíso da corrupção e retomar, dos cofres dos demônios que lá vivem,  a riqueza da minha rica pátria para gozar da herança que  me é de direito desde que nela  nasci.
Hoje eu quero redescobrir minha terra adorada  e com orgulho poder dizer: "Entre outras mil, és tu Brasil, minha pátria amada!"

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Depois de Adão e Eva




Mesmo não crendo piamente na versão bíblica da criação sempre nutri um apreço pelo casal Adão e Eva. Talvez esta admiração se deva ao fato de ambos representarem desde sempre a atração e o envolvimento entre um homem e uma mulher. Alguém cogita a possibilidade de Adão não ter cantando Eva e Eva não ter cedido aos encantos de Adão, enquanto comiam a maçã? Eu não.
Tenho certeza que Adão e Eva se apaixonaram e namoraram por todo sempre que a minha imaginação permite que exista. Ainda que as escrituras religiosas tenham omitido estes pormenores sentimentais.
Gosto de pensar, assim, que o namoro surgiu com o mundo.
Fato que acabou sendo distorcido pela evolução. Em épocas arcaicas namorar chegou a ser condição de ascensão econômica e social. E pensar que muitas mocinhas foram obrigadas a namorar sem paixão para casar sem amor com os pretendentes dos pais. E que moços, da mesma forma, abdicaram de suas verdadeiras amadas para namorar mocinhas mais rentáveis.
Pois é, meus caros, a história nos conta que tentaram subornar o namoro rebaixando-o a um mero compromisso desprovido de emoção. O que, graças a Eros, o deus do amor (Cúpido para os mais chegados) não deu certo.
Namorar não é um estado civil a ser registrado em cartório ou servir de complemento no preenchimento da ficha vivencial de alguém. Muito menos um status de relacionamento sério. 
Como é que o Bam Bam Bam das redes sociais, o poderoso Facebook, não sabe que namorar é um relacionamento divertido? Namorar é um estado de espírito, quando este está extasiante. Um rompante descompassado do coração de escancarar suas portas e levar alguém especial para morar dentro dele.
Uma pena que existam muitas pessoas, muito mais do que meu coração gostaria, que ainda conservam tabus com relação ao namoro e fazem dele um critério a ser avaliado antes de decidirem entre estarem bem acompanhadas e mal sozinhas. Não necessariamente nesta ordem. 
Tal qual Lulu Santos, me faltam dedos pra contar. Só que a minha conta é de pessoas que temem despencar do barranco das emoções e se machucarem.  Tantos alguéns que se aposentaram da emoção de enamorar-se por outro alguém e se autocondenaram às ridículas convenções para não se sentirem ridículos, escolhendo viver no terreno plano e estéril da vida. 
Ou porque já namoraram, casaram, divorciaram e creem já terem representado todos os estados civis estabelecidos; ou porque namoraram, não casaram e acreditam que estão condenadas ao azar de nunca mais passearem de mãos dadas sob as luas cheias à beira mar.
Vibro de alegria ao encontrar sob os sóis das calçadas, senhores e senhoras condenados por suas idades avançadas desobedecendo às leis do desuniverso social, passeando de mãos dadas, enamorados.
Aliás, namorar deveria ser prescrição médica para a longevidade. Bálsamo para a cura de dezenas de males. Antídoto para o veneno da amargura. Máscara para o rejuvenescimento da pele. Unguento para o fortalecimento das articulações. Calmante para as dores do coração. 
Namorar deveria ser um exercício diário a ser praticado aos quinze, aos trinta, aos cinquenta, aos setenta anos, até que o coração pulse. 
Namorar sem se preocupar se vai dar certo, em casamento. Sem pensar no tempo: um ano, dez, um mês. Namorar porque entre o quem sabe e o talvez, ser feliz só é possível quando se escolhe o sim.
Não penso em Adão como marido, pai ou avô. Muito menos em Eva passando roupa, trocando fraldas ou tricotando numa cadeira de balanço. Vejo os dois, por todo o sempre, namorando felizes e só.
Gosto de pensar, assim, que a felicidade nasceu com o namoro.

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Eu vou fugir!




Nunca pensei que chegaria o dia de sentir vontade de naufragar em uma ilha deserta. Posso mesmo estar exagerando, pois não cheguei ao ponto de querer me isolar do mundo. Mas, de uns tempos para cá, vem batendo na porta das minhas escolhas o desejo de me afastar um pouco. 
Nunca pensei que pudesse sentir isto também. Achei até que não sobreviveria sem o burburinho da evolução e sem respirar o frenesi das descobertas tecnológicas.
Nunca me considerei jurássica, pelo contrário, sou adaptável a qualquer situação de qualquer ambiente, ainda que não possa inflar o peito, como muita gente gosta de fazer, e arrotar o fato de ter vivido anos em algum país mais desenvolvido do que o meu subjugado Brasil.
 Minha mente é tão aberta que vire e mexe me pego correndo para trancar algumas janelas, antes que maus ventos se aproveitem do meu descuido, me invadam e me derrubem.
Ou seja, trocando em miúdos, sempre me senti parte integrante do cenário deste novo mundo que está se delineando dia após dia numa velocidade inalcançável. Até agora, que,acho...cansei!
O ápice deste enfado se deu na última viagem que fiz. Aliás, sugiro a constância destas “fugidas despretensiosas” que causam o abandono do nosso colchão feito com a espuma da comodidade, para experimentar novos e desconhecidas densidades, intensidades e, automaticamente, o verdadeiro despertar.
Infelizmente, neste despertar não gostei do que vi. Algo do tipo: você acorda e se dá conta de que era melhor ter continuado dormindo, pois o pesadelo era menos feio do que a realidade. Preferia realmente não ter constatado, sem nenhuma margem de erro, o quanto as pessoas conectadas estão se desconectando. O quanto estamos ficando solitários vivendo, ironicamente, num planeta de 7 bilhões de pessoas.  O quanto o poder da tecnologia, de estar em todos e vários lugares ao mesmo tempo, está fazendo com que as pessoas deixem de  coexistir.
Refiro-me a coexistir no sentido literal da palavra, que a mim significa utilizar com toda intensidade possível o poder dos seis sentidos para se relacionar com o meio. Pessoas conectadas ouvem mal; pouco falam; olham, mas não veem; não sentem e (ouso instituir o sexto sentido) não pensam. 
Munidos de celular, iPed, iPod, tablet, netbook, notebook, ultrabook... pessoas vivem conectadas a cada segundo de todos os minutos acordados e até dormindo, em seus mundos virtuais. Por todos os lados de todos os lugares, calçadas, shoppings, praças, banheiros... para onde se olhe a vida está acontecendo no ciberespaço e não mais aqui.
Viagens são mais emocionantes quando compartilhadas no Facebook. Paisagens tornam-se mais lindas ao serem postadas no Facebook. Comer é mais prazeroso ao exibir o prato no Facebook. Sentir dor, raiva, medo, saudade, solidão fica mais fácil depois de expor-se para todo mundo no Facebook. Amigos são mais amados no Facebook. Pessoas são mais reais no Facebook.
Olhar alguém, conhecer alguém, falar com alguém passou a ser uma ferramenta da internet, da qual todos utilizam, enquanto não perdem tempo de fazer isto ao vivo, a cores, ao ritmo da respiração.
As caras estão cada vez mais fechadas, os sorrisos mais raros, os corpos mais rígidos, os movimentos mais curtos, as emoções mais contidas e as pessoas mais sozinhas.
Não gostei do que vi ao despertar na minha última viagem. Não gosto do que vejo todos os dias aos despertar na minha vida. Não estou pronta para me integrar ao pós-humanismo que me convida a abandonar a identidade sensível e a consciência emocional que me constituem, para me tornar um avatar, como os tantos que vejo por aí...E que me levam a querer abrir a porta das escolhas para atender o desejo latente que grita aqui dentro:
 —Eu vou fugir! 


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Conversa de travesseiro



Acabo de beijar meu travesseiro e agarrada a ele, dizer que não existe nada mais luminoso do que uma boa noite de sono. 
Ao deitar para satisfazer o sono que puxava com suas fortes mãos minhas pálpebras para baixo havia me coberto com o edredom da tristeza. Aquele que você até deseja jogar aos pés da cama para se enroscar na trama leve da felicidade, mas não consegue erguer seu peso. Com o calor mórbido da consternação me envolvendo inteira, adormeci.  
A tristeza não precisa de grandes motivos para aparecer, pelo contrário, grandes motivos chamam a ira, o ódio, o rancor... A tristeza surge das minúcias aparentemente inofensivas. Gestos dissimulados, olhares desviados, palavras indevidas.  A tristeza que aquecera meu sono chegou quando alguém sugeriu que eu parasse de amar. 
Assim, com todo impacto e letras que cabem numa frase que não se faz questão de ouvir. Como quem manda parar de fumar ou de comer alimentos gordurosos, com toda a convicção de estar fazendo o bem à saúde de outra pessoa e, no meu caso, à minha saúde emocional. 
Imagine!  Alguém que considera que o amor é a única coisa saudável neste mundo, ser instruído, alertado (praticamente ameaçado!) a parar de amar sob a pena de sentir o efeito colateral de ter de sofrer, chorar, se decepcionar, se ferrar. A receita prescrita a mim, naquele momento, sugeria que eu dosasse o amor que costumo oferecer às pessoas e coisas que me rodeiam num conta gotas. Como poderia controlar o meu vício de acreditar que - ainda que estas pessoas e coisas venham a machucar o meu coração - o bem que causo é o mesmo bem que receberei? Comecei a passar mal só de imaginar as reações que teria por conta da abstinência do amor. Fiquei inconsolavelmente doente!
Acordei sufocada por todas aquelas palavras carregadas de desalento até que de repente, entre o impulso da nona ou décima lágrima, a luz se acendeu. Sem que eu tocasse nenhum interruptor ou empurrasse qualquer tecla, tudo ficou magnificamente claro.
O guru da falta de sensibilidade, da mesma forma que escarniara o amor, havia zombado do poder das palavras, enquanto se utilizava delas para me dissuadir das minhas crenças. 
Imagine! Alguém que não viveu um dia sequer sem transformar sentimento em palavras e palavras em sentimento, ser informado, avisado (praticamente menosprezado!) de que palavras não mudam pessoas e são mera perda de tempo. Tive náusea só de pensar no tempo que havia perdido e ainda ansiava perder para jogar palavras no peito, em cada peito que não o meu.
Ironicamente aquelas palavras tiveram o poder de trazer a tristeza até mim e de fazê-la me sufocar por toda uma noite de sono sem sonhos. Exatamente as palavras de alguém que desacredita do poder das palavras haviam arruinado o meu dia me fazendo dormir coberta de agonia. Alguém que acabara de ser desmistificado por mim.
Palavras dão forma aos sentimentos; colorem paisagem; dão tom ao som; põem cheiro e sabor; fazem tudo do nada.  Contrariando o alguém que estimulou minhas lágrimas, palavras de tão poderosas podem transformar pessoas e, consequentemente, o mundo em melhor ou pior. 
Já o amor... Ah! O amor... Este possui um único e inigualável poder: faz tudo e todos ficarem melhor.
Depois de uma noite de sono sem sonhos desperto com a certeza do que sou muito mais forte. Beijo o travesseiro cúmplice e divido com ele as primeiras emoções matinais: 
 — Sabe o que vou escrever na crônica de hoje?  Que não vivo sem as palavras e prefiro morrer a deixar de amar.

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O quarto verde



Das lembranças todas que carregamos vida afora, algumas são muito mais do que simples recordações. A intensidade com que foram vividas fica impregnada em nossa memória através da cor, do cheiro, do som, transformando-as em refúgios inabaláveis dentro de nós.
Em nossa casa de praia, dos cinco quartos construídos para abrigar intimidades e sonhos (meus e dos meus quatro irmãos) um deles foi pintado de verde, num tom de verde mais claro do que o da folha. Cor um tanto quanto estranha para se pintar um quarto, admito. Mas este foi o quarto da minha infância e adolescência feliz, o qual, ainda que a casa não mais exista, se mantém intacto em mim.
Não sou dada à nostalgia. Voltar ao passado para viver a vida que ficou por lá, não está na lista dos meus desejos impossíveis. Costumo assumir o dia que me cabe com as alegrias e tristezas que lhe cabem como, literalmente, o presente a ser apreciado, desfrutado e agradecido.
Por conta disto muitas vezes me considerei estranha e, confesso, um tanto quanto insensível. Enquanto uma amiga choramingava a dor de não poder voltar aos descompromissados verões de beleza e paixões incendiárias, eu tentava convencê-la do quanto é possível embelezar e aquecer o inverno no único tempo que se possui: “agora”. 
Atribuo esta característica a uma inquietante busca por respostas ao ”algo mais” embutida no meu DNA, e, nos dias de hoje, agradeço por, na maior parte do tempo, conseguir viver no tão aclamado “aqui”.
 O processo é aparentemente, muito simples. Você acorda, sabe que possui “X” números de horas para gastar até voltar a dormir, nas quais precisa estar presente, atento e consciente a cada segundo. Ou seja, pode-se até dar um rolê no futuro ou uma fugidinha ao passado, mas a alma continua mantendo o presente organizado, arejado, em dia.
E se é tão simples assim, por que foi preciso que escrevessem livros e mais livros ensinando as pessoas a viverem apenas os momentos que acontecem, efetivamente, em suas vidas? 
Porque nem sempre eles são agradáveis. Contrariando nossas expectativas e tantas vezes embriagando nosso livre arbítrio, a vida se apresenta num enredo ruim e nos faz protagonizar personagens sofridos, doentes, deprimentes, deprimidos, lesados, vis...
Todos tão diferentes do que sonhamos ser, quanto responsáveis por nos fazer querer fugir. Correr para se refugiar nos braços de um passado complacente ou jogar-se desesperadamente aos pés de um futuro alentador. Ambos tão longe daqui, do agora.
Não desejo retornar ao meu quarto verde, muito menos voltar a ser a menina que achava que a vida era feita de momentos doces que poderiam ser guardados em frascos para decorar a penteadeira. Aceito a condição adulta de ter que desempenhar com êxito todos os papéis que a vida exige de mim. 
Mas confesso que quando ela teima em representar a megera implacável e cruel cheia de artimanhas e motivos que me fazem sofrer e desesperar; quando sem dó nem piedade a vida me traz notícias ruins e do alto de sua magnitude não deixa nenhum vão que eu possa espreitar para ver a luz da saída; quando não encontro a saída... Desejo fugir.
Assim, vira e mexe, entre o barulho das ondas e o cheiro do mar, me refugio ao som de Rua Ramalhetes e ludibrio a felicidade, fingindo que posso voltar a senti-la outra vez na mesma intensidade que  a senti “lá”, “naquele tempo ”, no meu quarto de tábuas verdes.

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Pingente de Estrela



Era céu de domingo quando a lua resolveu exibir-se inteira em sua ínfima fração de luz. Fiquei extasiada! Seria impressão minha ou havia alguma coisa diferentemente linda naquela paisagem celeste? 
Comum você se achar momentaneamente lelé ao imaginar um fio invisível caindo da ponta da lua crescente para arrematar num pingente de estrela. Normal até sacudir a cabeça a fim de acomodar tanta imaginação a bagunçar a sala dos pensamentos lógicos. 
Mas por mais que eu quisesse que tudo parecesse normal, que a lua não passasse de um satélite e o ponto de luz fosse apenas mais uma das centenas de estrelas espalhadas pelo céu, minha intuição poética me dizia que, enquanto a normalidade havia dormido mais cedo, naquela noite a excentricidade fugira da cama para se banhar ao luar. 
Afinal, anos e anos de observação nua dos meus olhos românticos garantia-me que nunca antes vira uma esfera luminosa aproximar-se tanto da musa noturna, transformando-a numa emperiquitada vedete de colar luminoso.
A confirmação me veio mais tarde, quando pedi socorro ao “brother” Google, e ele me tranquilizou informando que, realmente, Júpiter e Lua resolveram alinhar-se naquela felizarda noite de domingo. Feito dois amantes rompendo as barreiras do tempo e do espaço pelo prazer de estarem mais perto, numa noite apenas.
Faceira da vida me atirei na cama me sentindo o próprio Neil Armstrong! Exagero?! Quem disse que você precisa pisar na lua para se sentir íntima dela, a ponto de saber quando ela está mais exultante do que o habitual?
Aliás, é exatamente este tal “habitual” que cria as distâncias quilométricas entre as pessoas e a magia visível e palpável do mundo. A força do hábito tem enfraquecido a visão ultradimensional dos seres comuns. O poder inventivo anda cada vez mais comprometido. O peso dos pés nos chão tem atrofiado as asas até dos pequeninos, antes mesmo que ousem voar.
Eu havia dançado na rua na mesma tarde em que Lua e Júpiter se encontraram. Confesso que estava vazia de gente e que árvores, pássaros, cães e gatos motivaram-me com a sua total falta de interesse sobre a loucura que acabara de me acometer tornando-me tão irracional quanto eles.
Foi a vez de me sentir a própria protagonista da abertura da novela de Manoel Carlos. Exagero?!  Quem disse que você pode valsar de paixão no meio da rua sem parecer ridículo, a não ser na vida irreal? 
Lamento tanto por quem pôs fim à emoção que fazia ver além da lua. Quem calou o coração que um dia ousou narrar o beijo roubado de uma borboleta na boca da flor. Quem finge não ver a ousadia do sol lambendo as costas do mar no meio da manhã de uma quinta-feira. Quem nunca sentiu o prazer de vestir a segunda com o traje de domingo e andar na rua como se fosse um parque.
Lamento que Júpiter demore a voltar, que a lua volte a ser apenas um satélite solitário e que você nunca mais volte acreditar na magia visível do mundo... E do amor.

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Café preto com caju




Era um daqueles domingos em que me convido para almoçar e como sobremesa me pago um café preto com caju, levando mais tempo do que o necessário para degustar os dois.  De verdade, ambos não passam de pretexto para que eu possa olhar em volta, sem pressa.
Avistei-a de longe vindo em minha direção. Empurrava o carrinho cheio de compras e usava vestido floral, rasteirinhas brancas e um sorriso pintado no rosto. 
Sinto uma admiração quase incontrolável por pessoas que sorriem mesmo quando estão sérias. Tenho vontade de aplaudi-las ao vê-las passar com seus cartazes faciais de mensagens subentendidas: “Estou sempre de bem com a vida, ainda que, por vezes, ela resolva ficar de mal comigo.” 
Entre um gole de café e uma mordida no caju a mulher de vestido estampado se aproximou de uma mesa próxima a minha, trocou uma dúzia de palavras com os ocupantes (tão desocupados quanto eu) e se infiltrou pelo corredor das tortas arrastando os pés como se estivesse calçando patins. Achei o máximo!
Simular patinação dentro do supermercado não é para qualquer um. Pelo menos não para qualquer um que já tenha passado dos doze anos, e a mulher de vestido estampado, certamente, há muito passara dos trinta. 
Não me canso de admirar pessoas que desfilam a coragem livre das posturas convencionais e trazem atrás de si o sol da felicidade para iluminar o mundo de todos que estão a sua volta. Vibro com impressão de sorrisos marcantes marcados nas rugas de alegria dos rostos que contagiam outros rostos. Tal qual a senhorinha de cabelos roxos que ri deliciosamente para a amiga numa conversa aparentemente agradabilíssima (enquanto desliza pela esteira rolante com seu cachorrinho no colo) abrindo para mim a porta do mundo da falta de obrigações e da leveza permissível que só a idade avançada parece permitir entrar.
Confesso que um dos efeitos da combinação do café com caju depois do almoço de domingo é fazer-me conjecturar sobre o tanto de pessoas que desfilam engessadas em seus papéis rotineiros de enredos cheios de compromissos pré-agendados, e de indivíduos que esperam para extravasar na cor do cabelo e na intensidade do riso só depois da aposentadoria.
Domingo foi feito para os exageros e é, contraditoriamente, o excesso de imaginação no instante da sobremesa que me entristece por me fartar dos fatos reais que tornam as vidas tão irreais e sem graça.
 Arrastar os pés pelo supermercado parece tão estranho; desfilar com cabelos roxos pela esteira rolante é tão esquisito; sorrir a todo o momento é tão insano; rir alto é tão deselegante; dançar quando o corpo pede é tão vergonhoso; falar o que se sente é tão perigoso... E lá se vão milhões e milhões de seres esgueirando-se pelos corredores estreitos de suas existências, cheios de prescrições, indicações e recriminações... Fingindo que se movimentam.
Quero mais estranheza de patinadores inventivos e esquisitice de cabelos roxos em minha vida. Preciso da insanidade dos sorrisos constantes e da deselegância das gargalhadas soltas em todos os meus dias. Necessito da vergonha tonta ao tentar acompanhar os meus passos de dança e do precipício que se abre a mim sempre que digo que amo alguém, e amo muito! Careço de mais domingos nas minhas semanas para exagerar na emoção e ver pessoas deslizando, depois de duas doses de café preto com caju.


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Tsunami



O evento do tsunami da Indonésia, na época, mexeu profundamente com minha estabilidade emocional. Criou-se uma agitação própria da constatação da minha impotência diante dos fatos imprevisíveis, do elemento surpresa, do monstro sem nome emergindo da falsa calmaria.
Depois daquilo não houve uma só vez que eu não me postasse diante das ondas - seja nas longas, solitárias e necessárias caminhadas; seja ao reclinar na cadeira com um livro entre mim e o mar - e pensasse: “E se vocês resolverem me engolir agora?” 
Veja bem, não é a catástrofe em si que me apavora, nem o seu efeito devastador sobre a natureza e os seres, mas sim a sua subtaneidade...  O que também me remete à paixão.
É num instante de calmaria que ela costuma chegar. Exatamente quando todas as emoções estão em estado de férias permitindo-se cochilar por tempo indeterminado ou quando você, por vontade própria, resolve mandá-las dormir até segunda ordem.
Ela acontece nos momentos de desatenção, quando todas as estratégias foram vencidas e armas abandonadas. Exatamente na cena em que o coração recosta-se,  rendido pelo cansaço de tentativas frustradas, que ela adentra. Desenrolando seu próprio tapete vermelho com a pompa que lhe cabe, a paixão chega causando. E, a partir daí, nada mais ficará no lugar.
Contou-me uma amiga que o primeiro efeito colateral manifestado em si - logo que a paixão a devastou - foi ter queimado o arroz. Para alguém que passa anos e anos cozinhando o arroz soltinho mais elogiado e cobiçado da família, queimá-lo é uma consequência seriíssima! Levanta suspeita até da vizinha, ao sentir o aroma libidinoso se espalhando pelos corredores do prédio.
E quando a campainha soou o toque dos curiosos de plantão, minha amiga ensaiou a cara mais sem sal que possuía: 
—É que o celular tocou bem na hora em que eu tinha de apagar o fogo e tampar a panela para completar cozimento.
 Impossível apagar o fogo da paixão! Ele salta pelos olhos.
—Nossa! Mas você parece muito feliz para quem acabou de queimar o arroz. Ta rindo o tempo todo!
—Eu, rindo?! Ah! É o cacoete de quando estou nervosa.
Mas a onda do desvario é muito mais poderosa do que se supõe. Depois do arroz veio o efeito do trabalho, ou melhor, da falta de atenção no mesmo.
—Fulana (o nome fictício da minha amiga apaixonada), você viu aquela nota fiscal da mercadoria que chegou logo de manhã?
—Hã? Deve estar no arquivo de entradas.
—Não está. Inclusive fui procurar e vi que guardou o seu celular lá. Algum motivo especial para arquivá-lo?
—Meu celular???!!! Mas eu guardo ele neste compartimentozinho aqui da bolsa...O-o-lha aqui...achei a nota fiscal... Desculpe, ficou amassadinha.
A vida vira um caos. A cama vira guarda-roupa; o guarda-roupa vira bagunça; a pia vira armário; o armário fica vazio, assim como a geladeira. A bombona fica sem água; os filhos ficam sem lanche; o cachorro sem ração. O relógio descompassa; ora as horas passam rápido demais; ora se arrastam; ora se perde as horas. 
Sem falar do efeito físico causado pelo sangue que agita o coração que descompassa...Quase para, mas volta a acelerar. 
—Fulana! Estava reparando você lá da fila, como está linda! Que brilho é este no olhar? E no cabelo... Você emagreceu?!  Andou fazendo procedimentos, né?
— Procedimentos, como assim?
— Botox, preenchimento, lipo, progressiva...
— Claro que não! Nem tenho grana pra isto.
— O que aconteceu, então? Você está diferente!
— Hummm... Deve ser o efeito do tsunami (minha amiga se apropriou do nome fictício que dei para a paixão). 
— Vai me dizer que você esteve na Indonésia?! Naquele paraíso!
— É, conheci o paraíso, sim. Mas nem saí do Brasil!
Uma pena que como toda onda ela também passa, a paixão.

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Sem %


 
Nunca gostei de liquidação. Inexplicavelmente os enormes e reluzentes números seguidos pelo atrativo símbolo (%) pintados nas vitrines, não me atraem. Muito pelo contrário, estas inscrições hipnóticas que induzem 99, 9% das mulheres para dentro das lojas, a mim (e tenho completa noção de que isto possa significar uma acentuada anomalia em algum dos X dos meus cromossomos), me repelem.
Nem pelo telefone, quando alguma voz atenciosa dita em meus ouvidos que “todas as mercadorias estão com desconto de X%”, o X consumista da minha natureza feminina não reage.
Nunca busquei uma explicação convincente para a minha apatia diante das liquidações do que quer que fosse. O fato de não sentir tesão em possuir algo exposto desleixadamente, manuseado por centenas de mãos, provado, amassado, descartado, era a explicação satisfatória para a mania que tenho de filosofar até sobre o ato de chorar em frente a pia descascando cebola.
Não entro em fila às cinco da manhã para levar a torradeira da Ana Maria Braga, nem se ela estiver de graça, pronto e ponto.
Porém, dia destes, chorando em frente a pia descascando batatas, me dei conta de que isto acontece comigo não só com relação às mercadorias, mas às pessoas, principalmente.
Sempre fui exclusivista. Nunca tive mais do que três amigas de verdade, por fase, na minha vida. Pechincharia de abraços e sorrisos despertavam-me mais desconfiança do que a sensação de ser querida.
Estandarte do slogan “Poucas, porém boas”, nunca abri as portas do meu coração e da minha vida para a multidão de pessoas que desfilava nas calçadas da minha infância à maturidade. Selecionar pessoas para fazer parte da sala íntima das minhas emoções foi um hábito que, creio, trouxe comigo ao nascer.
Lembro que na segunda ou terceira série do primário (daquele tempo), conheci uma menininha loura de olhos azuis cativantes e a convidei para brincar em minha casa. No meio da tarde já havia decidido que os modos da garotinha que usava o casaquinho de lã sobre os ombros (feito uma adulta precoce), somado ao fato dela falar o tempo todo sobre as técnicas de como beijar guris, riscavam qualquer possibilidade de registrá-la como amiga em meu caderno da infância. Antes mesmo de a minha mãe abrir a boca para dizer “esta menina não é companhia para você”, a garotinha atravessara o portão para nunca mais voltar.
Assim como nas liquidações, existem pessoas (aos montes) querendo ser levadas para dividir os seus aposentos mais íntimos. O que, num primeiro momento, é realmente tentador. Deparar-se com algo (ou alguém) que parece ser vantajoso, rebolando na sua frente ao ritmo de “me leva, me leva”, indiscutivelmente é o maior frenesi. É difícil resistir a uma oferta!E é, exatamente, ao não resistir que fizemos os piores negócios.
Quem já não se arrependeu de um impulso, assim que entrou em casa e viu a mercadoria enfiada dentro da bolsa sem o glamour dos holofotes da vitrine? Ou tão logo colocou os pés na calçada e respirou o ar livre do ópio consumista tragado no interior dos recintos comerciais?
 Da mesma forma, quem já não sofreu no peito o prejuízo de ter bancado um relacionamento pela beleza do “produto” exposto? Quem não se culpou profundamente por só ter reparado nos defeitos quando já havia instalado alguém no coração? Quem não se arrependeu amargamente por não ter freado o impulso de levar para casa alguém que todo mundo tem?
Por estas e outras, costumo dar valor às coisas que não estão à mostra. Não me interesso por etiquetas reluzentes, prefiro perder tempo lendo nas entrelinhas até descobrir, numa frase quase invisível, a informação que tanto busco.
 As raridades é que me atraem, me fascinam e me fazem desejá-las enlouquecidamente.  Procuro modelos difíceis, gosto da exclusividade, da singularidade e, desvairadamente, da dificuldade de encontrar.
 Sou viciada em pessoas sem preço, que não se submetem ao rebaixamento por conta de um simbolozinho qualquer na vitrine das suas vidas.
Não entro e nem caio em liquidação. Sou louca por peças raras, que de tão caras não se consegue comprar.

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Com cisco no olho


 
Por muito tempo sofri a cada final de verão. De tal forma que o significado da palavra sofrimento foi descoberto por mim assim, no fim das férias. Por conta disto, desejei reverter o costume adotado pela minha família e por todas as famílias da minha cidade que possuíam casa na praia: fechá-las definitivamente no dia anterior ao início das aulas.
A fim de eternizar o turbilhão de emoções sentidas na estação mais quente do ano, acreditava que continuar morando na beira do mar manteria a magia dos dias que eram sempre ensolarados, mesmo quando chovia.
De tão pequena, não conseguia identificar de onde vinha o monstro que corroia meu estômago e nem por que ele aparecia, para devorar as minhas entranhas, no fim de todos os verões. Tentava apenas segurar, em vão, as lágrimas que teimavam em fofocar para minha mãe o que eu estava sentindo.
Certa vez, quando o verão - não contente em partir - levou meu adorado irmão mais velho para estudar bem longe de mim, as lágrimas não se contiveram e resolveram despencar, todas, aos borbotões. Enfiei-me embaixo da cama e só sai de lá depois de muito minha mãe me procurar e me arrastar pelo assoalho empoeirado. Quando ela quis saber por que eu estava chorando, disse que estava com cisco no olho.
Depois de ter visto meu irmão partir com sua mala na calçada, os verões nunca mais pararam de levar pessoas e momentos para longe de mim, assim que terminavam.
Faltam dedos para contar os amores que se foram. Para cada ano um amor diferente de uma cidade distante que eu jamais iria conhecer, a não ser pelo mapa ilustrado no Atlas, sobre o qual me debruçava na ânsia de que os trouxessem de volta.
Uma única crônica não é suficiente para contar as amizades que não resistiram ao inverno rigoroso e nunca mais voltaram a ser como eram; os parentes que  tornaram a ser distantes e nunca mais motivaram uma rodada de canastra ou de dorminhoco, valendo rolhadas; a frigideira que nunca mais viu graça em frigir bolinhos de chuva, mesmo quando fazia sol.
Os verões do passado também serviram para me ensinar, na prática, o significado de ilusão. Ainda pequena descobri que as coisas que a gente acha que durarão para sempre (de tão intensas) se acabam, fazendo-nos sofrer na mesma intensidade.
Assim, num coquetel de felicidade e lágrimas, prazer e dor, o verão me foi servido ano após ano. Até que a minha couraça emocional passou a ser como as asas do Bat Fino (quem se lembra do morcego super-herói?), de aço. O que, por muito tempo, me permitiu sobrevoar os verões sem mergulhar totalmente o coração e correr o risco de afogá-lo mais tarde, até agora.
Senhoras e senhores! Comunico que os adultos não estão imunes às desilusões “veranísticas”.
Não é que foi pega outra vez?! Mergulhei de corpo, alma e coração e me esqueci de lembrar que chega uma hora que é preciso colocar os pés no chão e se enrolar na toalha. Deparei-me, na plenitude da maturidade, com a mesma sensação de criança, ao ver minha mãe girar a chave e lacrar a casa da praia e da felicidade, até o próximo ano.
A temporada de verão termina encerrando um ciclo de convivência calorosa, alegre e bronzeada. Levando consigo os embalos das noites que se estendem até o despertar do primeiro raio de sol; as conversas desprotegidas sob o céu nu; a quentura das emoções desnudas; a alvura dos sorrisos libidinosos; a embriaguês permissiva das férias; a ilusão.
A magia de verão se foi e me deixou aqui, assim, com o maldito monstro (que não sei de onde vem) a devorar minhas entranhas, e com um enorme cisco no olho.
Com licença, preciso ir para debaixo da cama.

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Cartão de amor

 
Remexendo no fundo do guarda-roupa encontrei uma caixa antiga - que ganhei de presente há muito tempo num dos meus aniversários de guria- a qual elegi para ser a guardiã dos cartões românticos que fui recebendo ao longo da vida.
Ao abrir um e outro, eu li o amor. Na maioria deles um amor forte e inabalável se declarava no papel por letras distintas, me fazendo relembrar as emoções sentidas em cada um daqueles períodos vividos. Mas não pude mais senti-las. Ainda que se mantivessem em perfeito estado de conservação e que tivessem velado o amor de cada época, aqueles cartões bonitos não foram suficientes para mantê-lo vivo. Então, lembrei-me da minha mãe.
Cresci ouvindo-a dizer que amor, de fato, não existe. Custei a entender que o tempo havia conferido a ela o conhecimento prático sobre as emoções que, infelizmente, na maioria das vezes, não são tão poéticas quanto sugerem ser.
Depois de anos de casamento, cinco filhos e serviços domésticos gratuitos, a mulher que me gerou, descobriu que amar não é um verbo intransitivo a ser conjugado por toda vida, e achou por bem avisar a filha, antes que ela se surpreendesse lá fora.
Não precisaria nem dizer que - como todo filho que preza pelas próprias cabeçadas - não dei a devida importância às dicas de mamãe. Aliás, sequer perdi tempo me aprofundando no significado daquela frase que, num primeiro momento, pareceu-me superficialmente fria.
Amor não existe? Nem a pessoa que me pôs no mundo me faria crer num absurdo deste!
Até que algumas desilusões e confusões sentimentais chegaram, sem avisar, para passar uns tempos comigo.
Ô mãe, me explica, me ensina!
O amor não é uma fórmula exata - finalmente ela me viu sentada, com olhos e ouvidos atentos ao que tinha para falar – onde os dois serão, eternamente, o somatório de um mais um. Amor é múltiplo de atitudes e acontecimentos que, quando em consonância, elevam o coração. Do contrário, quando em desarmonia, podem causar o mal até zerar.
 Confesso que não foram exatamente estas palavras que ela usou, mas de maneira simples (não menos sábia) minha mãe apresentou-me, na prática, a outra face do amor que tende a ser teórico. E me fez ver que ele é um conjunto de coisas que quando deixam de acontecer ele deixa de existir. Por isto me lembrei dela ao reabrir a caixa de cartões apaixonados que recebi ao longo da vida.
O amor não é concreto como um cartão romântico. Num cartão escrevem-se palavras bonitas que poderão durar sim, por toda uma vida ou além dela. Num pedaço de papel brilhante os sentimentos tornam-se invioláveis e as juras tornam-se eternas. Surdo dentro da caixa, um cartão de amor é inatingível aos gritos e ofensas. Cego na escuridão em que é guardado, um cartão não vê a traição. Na impermeabilidade da emoção, um cartão não sente a dor da decepção. Um cartão não perde a calma, nem a compostura, portanto nunca colocará o ódio para fora junto com o amor. Um cartão de amor passa ileso pela primeira até a última crise. A menos que você tenha o ímpeto de rasgá-lo ou queimá-lo, ele sobreviverá a muitas vidas. Mas o amor não.
O amor é frágil. Suscetível aos vaivéns emocionais, ele perde o chão, cambaleia e cai. O amor perde a cor com a tristeza; amarela com a indiferença; se rasga com a agressão; se desmancha sob as lágrimas.
Ainda que você teime em conservá-lo pelo resto da vida, o amor não pode ser protegido por uma caixa bonita e muito menos sobrevive na escuridão do guarda-roupa. O amor precisa de luz e – como diria a minha mãe - quando ela se apaga ele deixa de existir.
 

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Quinto dos desapegados



Acho que enquanto Deus está preocupado em atender bem as pessoas, o Diabo se especializa em estratégias de marketing.
Perceba o quanto a notícia ruim bate em seus ouvidos minutos após ter acontecido, enquanto as boas, muitas vezes, você nem fica sabendo. Coisa ruim se alastra rápido e pega fácil. Gripe, conjuntivite, piolho, sertanejo universitário e funk estão aí para comprovar. Coisa ruim vira epidemia, moda, hit do momento.
Na última mesmo o capeta se superou. Pasme! A humanidade está cultuando o desapego.
 E não estou me referindo ao desprendimento da matéria, não. O povo está divulgando, curtindo e compartilhando o desapego entre as pessoas mesmo.
Redes sociais escancaram a campanha da vez, se relacionar sem se apegar.  Caras lindos, bombados (e abobados) ilustram avisos ridículos: “Não te apega. Eu não presto”.  Mulheres lindas, malhadas (e mal amadas) anunciam em seus murais: “Eu pego, mas não me apego”.
A palavra desapego ganhou peso, glamour, status. Pessoas enchem a boca, orgulhosas, para afirmar que praticam o desapego, assim como vão seis vezes por semana à academia.
Como assim?! Devo acreditar que é bacana pegar e ser pega, mas não me apegar?! Quer dizer que a minha matéria pode ser apalpada, usufruída, desfrutada, pois o desapego se restringe ao sentimento, à emoção, ao meu espírito?
Outro dia uma amiga me contou que o namorado, depois de quase um mês de sumiço, voltou cheio de amor para dar, mas quando ela perguntou quando iriam encontrar-se novamente, ele pulou feito um gato, eriçou os pelos e foi logo intimando “Bah! Não dá para gente praticar o desapego?” Minha amiga ficou pensando. E quando perguntei (abismada!) por que ela não mandou o bonitão para o quinto dos desapegados, confessou envergonhada que não quis parecer antiquada.
Socorro! As pessoas estão sendo abduzidas!  Uma mulher deve se sujeitar a ser usada como uma TV, um computador, um celular, um automóvel, quando o outro sentir vontade ou necessidade, só para ser moderninha? Calar o desejo de ser amada, desejada e respeitada todos os dias pela mesma pessoa, para não parecer retrógada? Ser pega como uma boneca inflável e depois esvaziar-se num canto muda de tristeza e murcha de amor? 
Minha amiga apaixonada pelo desapegado ficou confusa, seu amor tornou-se sobressalente de uma hora para outra. Um estepe que dificilmente se usa; um peso de papel enfeitando a mesa do escritório; um vaso vazio aguardando pelo próximo buquê; um jogo de jantar que nunca saiu da caixa; uma garrafa de vinho na adega de quem não bebe.
E agora, o que se faz com o amor na era do desapego? Quando a troca de olhares não passa de um convite para a pegação, o beijo é a aceitação explícita do tal convite, e o sexo mera necessidade fisiológica? Tudo feito sem expectativa.
Esperar uma ligação no dia seguinte? Não confesse isto nem ao seu cachorrinho, para não correr o risco de vê-lo rir em vez de latir.
Imagino que, depois da proposta “desapegadora” do suposto namorado, a minha amiga acabou descuidando do seu amor, abandonando-o ao pó e às traças, destino certo das coisas sem utilidade. Até desapegar-se totalmente. O que não significa que os dois não continuarão se pegando.
Entendeu a “ilogística” do processo do desapego?
Vai dizer, então, que isto não é trama do capeta? Eita! Marketeiro bom dos infernos!
Por sorte ou azar (ainda não estou bem certa), Deus me fez imune aos modismos superficiais e ao consumismo vazio. Caretona assumida, não pego, nem me deixo pegar, não entro em promoções, nem me liquido.
Sou do tempo da paixão, do sangue quente, do sonhar acordado, de esperar o dia seguinte cheio de mensagens e expectativas, do amar sobre todas as coisas. Sou irrecuperável! Não tem jeito, nem transfusão, eu me apego irremediavelmente.
Se houver algum sobrevivente da minha espécie, faça contato. Precisamos nos proteger. 

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É o vazio que mata

 

 

Já estive ao lado da morte mais de uma vez. Para ser mais clara, por duas vezes a morte tentou pegar carona no meu carro. Em ambas ilesa, mas senti o odor gelado de sua presença próxima a mim, antes que desistisse de me levar com ela.
Pensando melhor, creio que só queria me assustar. Lançar seu sopro ameaçador na minha cara e me fazer despertar para a vida. Em ambas as vezes deu resultado. 
Por um período tomei consciência de que viver é o intervalo de tempo antes de morrer, e que é preciso otimizá-lo. Contudo, como tudo na vida, você acaba esquecendo, inclusive, da morte.
Até que, num certo dia, ela volta à cena fazendo um estardalhaço que é para lembrar que continua por aí, embora distante. E mesmo que você não sinta o seu hálito frio a congelar os poros, ela assusta! E desperta para o tempo que ainda tem antes de vir lhe buscar.
Quando a morte chegou de supetão em plena manhã de domingo, sacudindo o meu coração para me mostrar, embriagada, o que fez na madrugada, tomei um susto, xinguei, chorei, mas não pude fazer nada. Não pude mandar prendê-la, sequer esbofeteá-la com minhas mãos trêmulas de indignação. 

Definitivamente a morte não é algo para ser compreendido, apenas aceito. Pois a explicação é muito mais complexa do que saber de onde partiu a faísca que iniciou o fogo.
Morrer não está nos planos. Mais fácil acreditar em ganhar a Mega Sena acumulada e ficar milionário em uma semana; planejar uma volta ao mundo no futuro distante; esperar a cura do câncer pelo resto dos dias; do que cogitar a ideia de extinguir-se de uma hora para outra.
Não fomos educados para o fim, pelo menos não para o final trágico que acontece mais cedo do que se supõe. E (ingenuamente?) supõe-se que a morte só escolhe os que viveram até, ou além, da expectativa. Ainda assim, tenta-se ludibriá-la.
Adoramos brincar com a morte. Rir da sua incapacidade de nos alcançar em nossas atitudes imprudentes. Desafiá-la com o lenço vermelho, esquivando-nos no vão entre ela e a vida, até levarmos a chifrada fatal e nos acharmos injustiçados.
A morte não é algo que se deseje, óbvio que não. Contudo, ela não é uma escolha, tampouco um acaso, é a sentença proferida a nós no dia em que nascemos, e que jamais acatamos.
Não é o fato morrer simplesmente, é o fato de deixar de existir. A falta da presença pelos cômodos da casa; da risada única ecoando pelas paredes; do incessante abrir e fechar a geladeira; da bagunça personalizada cheia de meias e cuecas perdidas; do cheiro; da transpiração, do som. É o vazio que mata!

Por isso, nunca consegui dizer “meus pêsames”, nem “sinto muito” com convicção. Não há o que se dizer para explicar a morte. Não existem palavras para amenizar a dor de quem continua habitando o vazio. Só o silêncio se faz necessário numa hora destas, para que se ouça a voz do universo cumprindo a sua sentença.
E num lampejo de luz se possa aceitar que morte não deveria ser uma surpresa, cada dia a mais de vida é que sim.

 

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Creme de avelã


 
Limpava a caixa de entrada de emails quando me deparei com a Oração ao Anjo do Amor, enviada a mim há algum tempo por uma senhora gaúcha que encontrei rapidamente, e por acaso, em um restaurante.
Não sei explicar ao certo como a nossa conversa começou, mas lembro de quando, com os olhos brilhantes de felicidade, ela me contou que havia encontrado o amor de sua vida, depois de muito ter se desiludido e de ter completado sessenta anos. Lembro também, de que a sua exultação me fazia parecer mais velha e, certamente, desanimada naquela fila do buffet.
O amor tem destas coisas de rejuvenescer as pessoas instantaneamente. Volto a pensar no quanto seria bom se fosse acondicionado e vendido: “Amor solúvel e instantâneo”. Sem colesterol; sem lactose; sem glúten; 100% saudável!
E sem que eu tivesse proferido qualquer sussurro de socorro, a renovada senhora gaúcha achou por bem me ajudar. Afinal, não tinha dúvida de que fora a conversa diária com o Anjo do Amor que havia materializado o homem perfeito em sua vida.
Mas é preciso pedir direito, ela afirmou com veemência. Faça uma lista de todos os atributos que deseja que um homem possua, sem esquecer nenhuma, e reze. Reze todos os dias... e todas as noites também, de preferência.
 Prometi fazê-lo e ela prometeu enviar a oração por email. Sentamos para almoçar em nossas mesas separadas, e nunca mais nos vimos. Ela cumpriu sua promessa e eu não. Apenas guardei o email como uma espécie de envelope protegendo aquela oração, para o caso de algum dia achar por bem executá-la. Anos depois, ao encontrá-la durante a faxina na caixa de emails, não só não consegui lançá-la na lixeira como passei a pensar no anjo e no amor.
Confesso que me soa esquisito fazer um “checklist” das características necessárias para alguém vir a ser o meu amor, e, o que é mais constrangedor, lê-las diariamente para o anjo.
Caro anjo, me mande um cara maduro, mas não velho.  Aliás, vou grifar as palavras “maduro” e “velho” com cores distintas, para que fique bem claro que um não é sinônimo do outro. Não vá se confundir!
 A altura é importante. Precisa ter mais do que 1.80m, para que eu possa continuar usando meus maravilhosos saltos. Porém, se este for o único item incompleto pode-se abrir uma exceção, afinal as rasteirinhas estão cada vez mais charmosas.
Cabelo. É preciso que tenha cabelos! E que sejam naturais. Nada de Grecin 2000. Neste caso, podemos rever este item e colocar um adendo: Antes careca que tingido.
Dentes. Fator preponderante para uma relação vingar. Esteticamente, nada que seja radical. Arcadas simétricas próprias de usuários de aparelho ortodôntico são dispensáveis para a faixa etária que estamos procurando. Até porque, a irreverência de um incisivo lateral querendo subir no central pode ser uma particularidade encantadora. Sem falar que, assim, diminui o risco de confusão, prótese jamais!Nem bafo! Este último elimina todos os outros requisitos desta lista.
Barriga é, literalmente, o caminho do meio. Não precisa ser tanquinho, que é para evitar que possíveis lavadeiras queiram tomar emprestado, e nem “airbag” depois da batida. Apenas que esteja no lugar certo, atrás do cós.
Inteligência é imprescindível, mas que desconheça algumas coisas para que possamos aprender juntos. Menos o português.
Roupas. Não perca tempo com isto. Dou um jeito depois.
Ufa! Já fiquei entediada por aqui. Nunca fui metódica. Faço lista de compras e quando chego ao supermercado descubro que não sei onde a deixei.  Acabo tendo de utilizar o “olhômetro” para escolher o que necessito. Não sinto prazer em desfilar com o carrinho de compras pelos corredores pré-roteirizados. Acho maçante ter de enchê-lo com suprimentos básicos para as necessidades diárias listadas antes de sair de casa.
Por isto não cumpri a promessa feita à amiga relâmpago que quis me ensinar o caminho para encontrar o amor desejado.  Não conseguiria listar a pessoa ideal. Acabaria esquecendo qualidades importantes, me empolgaria com defeitos deliciosos. Levo o creme de avelã e esqueço a carne e do leite, entende?
Foi o que aconteceu com uma amiga para qual reenviei a tal oração. Quando perguntei por que o relacionamento havia acabado, ela respondeu que se esquecera de colocar na lista alguém com estabilidade financeira.
Gosto de pensar que o anjo existe e está pronto para ouvir os meus pedidos, assim que os faça, mas dispenso listas. Prefiro utilizar o “coraçômetro” para escolher quem necessito. Sei que corro o risco de esquecer a carne e o leite, mas também sei que não há nada mais delicioso do que uma colherada de creme de avelã na calada da noite.

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