Presente em mim



Sempre que o dia dos pais se aproxima penso não haver mais nada no que me inspirar, já que o meu pai partiu há muito tempo. E que,talvez, devesse apenas seguir a tradição de visitá-lo em seu jazigo vazio e frio para enchê-lo de flores perfumadas, coloridas e sem sentido.
Não lembro de meu pai gostar muito de flores. Ele gostava de bichos. Então, quem sabe devesse ornar sua sepultura com pássaros ou, ainda, colocar um cachorro de guarda, pois creio que esta seria a verdadeira forma de deixá-lo feliz.
Como isto não só não seria possível, como me faria extrapolar a escala da loucura permitida, me abstenho da visita compulsória ao mausoléu da família no meu domingo sem pai. Não antes de tentar convencer , pacientemente, a minha mãe de que ele está em qualquer outro lugar menos lá, no endereço fixo daquele condomínio fúnebre.
“Meu pai está dentro de mim”. Não é somente a ela que convenço.  A prova não está na inspiração que acabei tendo e que é apenas mais uma, das tantas que ele me presenteou. A prova sou eu. A composição de dois seres que continuarão vivos enquanto eu viver.
Admito que nunca havia pensado desta forma.  A ignorância ou a insensibilidade me faziam achar que aquele espermatozoide  que se uniu ao óvulo para me gerar, seria mero agente da concepção humana, neste caso específico, de mim. A pretensão me fez crer que o meu velho,  que partiu de cabelos brancos a mando de um coração cansado, não habitaria o condomínio sem vida e nem outro lugar qualquer deste plano terrestre. Que, simplesmente, evaporaria. Cheguei, até, induzindo a imaginação, visualizá-lo sentado em um banco embaçado de um jardim fluídico de outro plano, que reluto em chamar de céu, mas que sugere  algum sentido aos desaparecimentos instantâneos e dolorosos...para quem fica.
Descobrir meu pai vivendo em mim é algo que ultrapassa qualquer improbabilidade factual  e que, contrariando os princípios da vaidade humana,  não sinto a menor necessidade de provar.
Poderia insistir na herança genética que ele depositou em mim e acho que, desta maneira,  conseguiria tornar verossímil minha constatação. Poderia escrever um conto no qual relato a companhia de um anjo e que, numa noite de insônia, um par de olhos brilhando próximos aos meus  me fazem crer que o anjo era o meu pai. Ninguém acreditaria, pois contos não são feitos para crer. Tampouco alguém  descobriria o fato de eu ter fantasiado a verdade num conto de mentira.
Ontem, por caso, se fosse crer que o acaso existe,  abri um livro em que alguém perguntava com que os moradores do céu sentiam-se felizes ao  lembrarem da Terra. Sem precisar forçar a imaginação ouvi meu pai dizendo: “Não são as flores que me fazem feliz.”
E, desta forma, ele me inspirou mais uma crônica, das muitas que ainda lhe escreverei,  e  que é a verdadeira forma que tenho  de alegrá-lo, já que não posso enfeitar com pássaros, nem colocar um cachorro na porta de onde ele nunca esteve, pois vive dentro de mim.

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1 comentários:

Alex disse...

Ontem, em nosso encontro que reúne tantos ativistas culturais apaixonados pelas memórias, percebi tua divagação percorrer lembranças de teu pai... Como sempre, muito atenta e reflexiva, eis aqui mais uma pérola.

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