O calor exagerado empurrou-me para a janela à procura do
vento. Debrucei-me nela e, enquanto meus cabelos dançavam refestelados e
frescos, vi a vida passar.
Num curto espaço de tempo, em minutos rapidamente contados, ela parou, olhou
para mim e, num misto de reprimenda e piedade, provocou-me: “ Há quanto tempo
você não se debruça numa janela para me ver passar?”
Meus cotovelos sentiram a fisgada dolorida da culpa. Nunca mais tinham
descansado sobre um peitoril sem pretensão alguma, a não ser ver a vida
desfilar. Meu coração encolheu-se todo ao ouvir a gargalhada do tempo que, de
braços dados com ela, mirava-me inconformado da rua, em frente a janela. Meus
olhos se afogaram na emoção. Há muito tempo não aproveito o tempo para olhar,
sem pressa, a vida.
Descubro, então, o porquê do meu fascínio pelas bonecas de gesso de cores e
roupas extravagantes, as chamadas namoradeiras e fofoqueiras. Elas me remetem à
displicência ao chamado compulsório das horas e me relembram um passado remoto,
no qual postar-se na janela era um dos passatempos preferidos da alma. Vejo
almas cheias de tempo e de vida nas beldades de gesso.
As janelas perderam o sentido. De portais para outras dimensões, que iam da
casa vizinha ao fim da rua, até o horizonte da serra nua, foram rebaixadas a
molduras de telas vazias, passagem de ar, motivos para cortinas suntuosas e
nada mais.
Janelas virtuais sucederam as velhas cúmplices de madeira, onde se debruça uma
raça estranha que foi desenvolvida no confuso burburinho da evolução e perde o
tempo, que reclama não ter, vislumbrando pessoas inertes e paisagens intocáveis
de sua vida “fake”.
No dezembro quente, em que me debrucei na janela, desejei que outros olhos ali
estivessem a furtar comigo nacos da vida que corre solta nas ruas. Que juntos fofocássemos sobre o que andam
fazendo os cachorros vagabundos, os gatos vadios, as corujas boêmias, as
estrelas festeiras, a lua vedete. Que ouvíssemos o coral das cigarras afinadas,
o silvo dos grilos solitários, o canto
atrasado do galo que não ajustou o relógio. Que nossos cotovelos
tivessem cicatrizes feitas pelo tempo que gastamos namorando num peitoril
áspero e não numa tela plana.
Tempo que se perdeu de nós e ri inconformado em frente a
janela que nunca mais nos debruçamos para ver a vida passar, sem pressa.
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