Dona de si

A fascinação por ela surgiu quando ainda era muito pequena, mais precisamente quando acreditava e me encantava com os contos da carochinha. Mas foi pela Baratinha, apresentada num disquinho azul, a minha inesquecível paixão.
Contudo, naquela época, não tinha noção alguma do efeito que aquele inseto feio (do qual até hoje morro de medo) causava em mim. Simplesmente a adorava e a ouvia todos os dias sem cansar. “Quem quer casar com a senhora baratinha que tem fita no cabelo e dinheiro na caixinha. Ela é formosa e quem com ela se casar...”. Como um bilhete que me permitia entrar no mundo azul das baratas encantadoras de garotas imaginativas.
Outro dia, porém, a velha musa inspiradora da infância voltou à minha memória. Assim, sem que qualquer barata horrorosa do mundo do faz-de-verdade cruzasse o meu caminho, Dona Baratinha entrou em meus pensamentos batendo na porta da sala das minhas fantasias e intimando: “Como é que é menininha, não lembra mais das velhas amigas? Esqueceu definitivamente  o caminho do mundo do faz-de-conta?” Foi quando passei a pensar nela.
Para ser honesta, foi quando passei a analisá-la (coisa de gente adulta que até viaja pelo mundo da imaginação, mas leva a razão na mochila) e me dei conta do porquê de minha fascinação por ela.
Dona Baratinha é que era a mulher de verdade!
Ainda que não fosse bonita (vou ser honesta outra vez), ainda que fosse horrorosa, que carregasse duas enormes e desproporcionais antenas sobre a cabeça, tivesse pernas exageradamente finas, o corpo sem curvas,marrom e cascudo, e em vez de sangue possuísse uma gosma amarelada e nojenta, ela se valorizava!
Sabedora do seu potencial em administrar e manter a casa com maestria, esmero e sem ajuda de qualquer exemplar do sexo masculino, Baratinha só pensou em casar quando encontrou algumas moedinhas de ouro ao varrer a casa. Perceba a determinação por trás da atitude da barata: “Agora que já tenho minha própria casa e grana para me manter, está na hora de arrumar um parceiro que divida comigo as coisas da vida”.
E assim o fez. Mas se engana quem pensa que Baratinha foi colocando qualquer um dentro de casa. Qual nada! Ela resolveu selecionar pelo mais alto padrão de exigência: aquele que satisfizesse o seu bem estar. Afinal, não era boba de acabar com a paz em que vivia!
E fez-se fila na porta da barata. A bichinha feinha atraiu até os gostosões do pedaço, aliás, o primeiro a dar em cima de Baratinha foi o boi; o mais forte, viril e cobiçado exemplar da redondeza. E o que ela fez? O dispensou sem sequer conjecturar que as amigas ou inimigas morreriam de inveja ao vê-la desfilar com bonitão bem dotado. Imagine ter que viver com um brutamonte que poderia machucá-la a qualquer momento!
E assim fez com o jumento, cabrito, porco, gato, cachorro... Ninguém que a assustasse, que a incomodasse, que a ferisse, que bagunçasse sua vidinha tranquila e equilibrada. Para todos estes, ela disse não!
Até que (assim como acontece na vida da gente, acontece na dos bichos) acreditou ter encontrado o companheiro ideal. Alguém do seu tipo, do seu número, do seu gosto, do seu sonho... Dona Baratinha disse sim ao senhor Ratão. E se deu mal!
De todos os atributos que identificou no noivo, um grande defeito lhe passou despercebido: o cara era guloso, esfomeado e desprovido de autocontrole. Tanto, que no dia do casamento acabou caindo dentro da panela da feijoada e quase morreu afogado. Com a sorte de ter descoberto esta faceta oculta antes de chegar ao altar, Baratinha mais uma vez disse não! E seguiu cantando, à procura de alguém que realmente estivesse à sua altura.
Nada de príncipe montado em cavalo branco, de sapatinhos de cristal, de fada madrinha ou bruxa malvada, Baratinha era dona do seu destino, mantenedora de sua vida, fazedora de sua história e tinha os seis pés no chão, embora possuísse asas e pudesse voar.
Concluindo, minha admiração por ela não surgiu à toa. Ainda pequena percebi que Dona Baratinha era das minhas, assim como todas as mulheres que são donas de si.

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