Pingente de Estrela



Era céu de domingo quando a lua resolveu exibir-se inteira em sua ínfima fração de luz. Fiquei extasiada! Seria impressão minha ou havia alguma coisa diferentemente linda naquela paisagem celeste? 
Comum você se achar momentaneamente lelé ao imaginar um fio invisível caindo da ponta da lua crescente para arrematar num pingente de estrela. Normal até sacudir a cabeça a fim de acomodar tanta imaginação a bagunçar a sala dos pensamentos lógicos. 
Mas por mais que eu quisesse que tudo parecesse normal, que a lua não passasse de um satélite e o ponto de luz fosse apenas mais uma das centenas de estrelas espalhadas pelo céu, minha intuição poética me dizia que, enquanto a normalidade havia dormido mais cedo, naquela noite a excentricidade fugira da cama para se banhar ao luar. 
Afinal, anos e anos de observação nua dos meus olhos românticos garantia-me que nunca antes vira uma esfera luminosa aproximar-se tanto da musa noturna, transformando-a numa emperiquitada vedete de colar luminoso.
A confirmação me veio mais tarde, quando pedi socorro ao “brother” Google, e ele me tranquilizou informando que, realmente, Júpiter e Lua resolveram alinhar-se naquela felizarda noite de domingo. Feito dois amantes rompendo as barreiras do tempo e do espaço pelo prazer de estarem mais perto, numa noite apenas.
Faceira da vida me atirei na cama me sentindo o próprio Neil Armstrong! Exagero?! Quem disse que você precisa pisar na lua para se sentir íntima dela, a ponto de saber quando ela está mais exultante do que o habitual?
Aliás, é exatamente este tal “habitual” que cria as distâncias quilométricas entre as pessoas e a magia visível e palpável do mundo. A força do hábito tem enfraquecido a visão ultradimensional dos seres comuns. O poder inventivo anda cada vez mais comprometido. O peso dos pés nos chão tem atrofiado as asas até dos pequeninos, antes mesmo que ousem voar.
Eu havia dançado na rua na mesma tarde em que Lua e Júpiter se encontraram. Confesso que estava vazia de gente e que árvores, pássaros, cães e gatos motivaram-me com a sua total falta de interesse sobre a loucura que acabara de me acometer tornando-me tão irracional quanto eles.
Foi a vez de me sentir a própria protagonista da abertura da novela de Manoel Carlos. Exagero?!  Quem disse que você pode valsar de paixão no meio da rua sem parecer ridículo, a não ser na vida irreal? 
Lamento tanto por quem pôs fim à emoção que fazia ver além da lua. Quem calou o coração que um dia ousou narrar o beijo roubado de uma borboleta na boca da flor. Quem finge não ver a ousadia do sol lambendo as costas do mar no meio da manhã de uma quinta-feira. Quem nunca sentiu o prazer de vestir a segunda com o traje de domingo e andar na rua como se fosse um parque.
Lamento que Júpiter demore a voltar, que a lua volte a ser apenas um satélite solitário e que você nunca mais volte acreditar na magia visível do mundo... E do amor.

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Café preto com caju




Era um daqueles domingos em que me convido para almoçar e como sobremesa me pago um café preto com caju, levando mais tempo do que o necessário para degustar os dois.  De verdade, ambos não passam de pretexto para que eu possa olhar em volta, sem pressa.
Avistei-a de longe vindo em minha direção. Empurrava o carrinho cheio de compras e usava vestido floral, rasteirinhas brancas e um sorriso pintado no rosto. 
Sinto uma admiração quase incontrolável por pessoas que sorriem mesmo quando estão sérias. Tenho vontade de aplaudi-las ao vê-las passar com seus cartazes faciais de mensagens subentendidas: “Estou sempre de bem com a vida, ainda que, por vezes, ela resolva ficar de mal comigo.” 
Entre um gole de café e uma mordida no caju a mulher de vestido estampado se aproximou de uma mesa próxima a minha, trocou uma dúzia de palavras com os ocupantes (tão desocupados quanto eu) e se infiltrou pelo corredor das tortas arrastando os pés como se estivesse calçando patins. Achei o máximo!
Simular patinação dentro do supermercado não é para qualquer um. Pelo menos não para qualquer um que já tenha passado dos doze anos, e a mulher de vestido estampado, certamente, há muito passara dos trinta. 
Não me canso de admirar pessoas que desfilam a coragem livre das posturas convencionais e trazem atrás de si o sol da felicidade para iluminar o mundo de todos que estão a sua volta. Vibro com impressão de sorrisos marcantes marcados nas rugas de alegria dos rostos que contagiam outros rostos. Tal qual a senhorinha de cabelos roxos que ri deliciosamente para a amiga numa conversa aparentemente agradabilíssima (enquanto desliza pela esteira rolante com seu cachorrinho no colo) abrindo para mim a porta do mundo da falta de obrigações e da leveza permissível que só a idade avançada parece permitir entrar.
Confesso que um dos efeitos da combinação do café com caju depois do almoço de domingo é fazer-me conjecturar sobre o tanto de pessoas que desfilam engessadas em seus papéis rotineiros de enredos cheios de compromissos pré-agendados, e de indivíduos que esperam para extravasar na cor do cabelo e na intensidade do riso só depois da aposentadoria.
Domingo foi feito para os exageros e é, contraditoriamente, o excesso de imaginação no instante da sobremesa que me entristece por me fartar dos fatos reais que tornam as vidas tão irreais e sem graça.
 Arrastar os pés pelo supermercado parece tão estranho; desfilar com cabelos roxos pela esteira rolante é tão esquisito; sorrir a todo o momento é tão insano; rir alto é tão deselegante; dançar quando o corpo pede é tão vergonhoso; falar o que se sente é tão perigoso... E lá se vão milhões e milhões de seres esgueirando-se pelos corredores estreitos de suas existências, cheios de prescrições, indicações e recriminações... Fingindo que se movimentam.
Quero mais estranheza de patinadores inventivos e esquisitice de cabelos roxos em minha vida. Preciso da insanidade dos sorrisos constantes e da deselegância das gargalhadas soltas em todos os meus dias. Necessito da vergonha tonta ao tentar acompanhar os meus passos de dança e do precipício que se abre a mim sempre que digo que amo alguém, e amo muito! Careço de mais domingos nas minhas semanas para exagerar na emoção e ver pessoas deslizando, depois de duas doses de café preto com caju.


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Tsunami



O evento do tsunami da Indonésia, na época, mexeu profundamente com minha estabilidade emocional. Criou-se uma agitação própria da constatação da minha impotência diante dos fatos imprevisíveis, do elemento surpresa, do monstro sem nome emergindo da falsa calmaria.
Depois daquilo não houve uma só vez que eu não me postasse diante das ondas - seja nas longas, solitárias e necessárias caminhadas; seja ao reclinar na cadeira com um livro entre mim e o mar - e pensasse: “E se vocês resolverem me engolir agora?” 
Veja bem, não é a catástrofe em si que me apavora, nem o seu efeito devastador sobre a natureza e os seres, mas sim a sua subtaneidade...  O que também me remete à paixão.
É num instante de calmaria que ela costuma chegar. Exatamente quando todas as emoções estão em estado de férias permitindo-se cochilar por tempo indeterminado ou quando você, por vontade própria, resolve mandá-las dormir até segunda ordem.
Ela acontece nos momentos de desatenção, quando todas as estratégias foram vencidas e armas abandonadas. Exatamente na cena em que o coração recosta-se,  rendido pelo cansaço de tentativas frustradas, que ela adentra. Desenrolando seu próprio tapete vermelho com a pompa que lhe cabe, a paixão chega causando. E, a partir daí, nada mais ficará no lugar.
Contou-me uma amiga que o primeiro efeito colateral manifestado em si - logo que a paixão a devastou - foi ter queimado o arroz. Para alguém que passa anos e anos cozinhando o arroz soltinho mais elogiado e cobiçado da família, queimá-lo é uma consequência seriíssima! Levanta suspeita até da vizinha, ao sentir o aroma libidinoso se espalhando pelos corredores do prédio.
E quando a campainha soou o toque dos curiosos de plantão, minha amiga ensaiou a cara mais sem sal que possuía: 
—É que o celular tocou bem na hora em que eu tinha de apagar o fogo e tampar a panela para completar cozimento.
 Impossível apagar o fogo da paixão! Ele salta pelos olhos.
—Nossa! Mas você parece muito feliz para quem acabou de queimar o arroz. Ta rindo o tempo todo!
—Eu, rindo?! Ah! É o cacoete de quando estou nervosa.
Mas a onda do desvario é muito mais poderosa do que se supõe. Depois do arroz veio o efeito do trabalho, ou melhor, da falta de atenção no mesmo.
—Fulana (o nome fictício da minha amiga apaixonada), você viu aquela nota fiscal da mercadoria que chegou logo de manhã?
—Hã? Deve estar no arquivo de entradas.
—Não está. Inclusive fui procurar e vi que guardou o seu celular lá. Algum motivo especial para arquivá-lo?
—Meu celular???!!! Mas eu guardo ele neste compartimentozinho aqui da bolsa...O-o-lha aqui...achei a nota fiscal... Desculpe, ficou amassadinha.
A vida vira um caos. A cama vira guarda-roupa; o guarda-roupa vira bagunça; a pia vira armário; o armário fica vazio, assim como a geladeira. A bombona fica sem água; os filhos ficam sem lanche; o cachorro sem ração. O relógio descompassa; ora as horas passam rápido demais; ora se arrastam; ora se perde as horas. 
Sem falar do efeito físico causado pelo sangue que agita o coração que descompassa...Quase para, mas volta a acelerar. 
—Fulana! Estava reparando você lá da fila, como está linda! Que brilho é este no olhar? E no cabelo... Você emagreceu?!  Andou fazendo procedimentos, né?
— Procedimentos, como assim?
— Botox, preenchimento, lipo, progressiva...
— Claro que não! Nem tenho grana pra isto.
— O que aconteceu, então? Você está diferente!
— Hummm... Deve ser o efeito do tsunami (minha amiga se apropriou do nome fictício que dei para a paixão). 
— Vai me dizer que você esteve na Indonésia?! Naquele paraíso!
— É, conheci o paraíso, sim. Mas nem saí do Brasil!
Uma pena que como toda onda ela também passa, a paixão.

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