Quando um vampiro sorriu para mim


           
Fazia um calor danado. A banda tocava em ritmo alucinante anestesiando os corpos suados. Pessoas (muitas das quais eu nunca havia visto na vida) supriam a vazão de líquido ingerindo cerveja morna devido ao adiantado da hora. O clube que acolhia a eletrizante noite fora construído às margens do rio que corta a cidade. Resolvi, então, me afastar do clima escaldante que invadia o salão para tomar ar fresco, vindo do rio, na varanda.
Apoiada no parapeito, enquanto tentava desvendar o leito de água corrente que fora encoberto pelas árvores, avistei alguns corpos coreografando na escuridão o movimento letárgico dos amantes. Tratei de me virar para não invadir a privacidade que ali se escancarava e, foi, então, que o avistei.
Sentado junto à parede de tijolos aparentes, atrás da pequena mesa, me chamou imediatamente a atenção devido ao porte atlético. De onde eu estava só conseguia ver o tórax ( envolto numa baby look preta) e os braços , mas a amostra já sugeria o conteúdo. Tinha os cabelos  escuros  esculpidos  em um corte bem aparado ao estilo masculino arrematado por costeletas grossas que desciam paralelas às orelhas. E, até então, não havia olhado para mim
Permaneci por alguns minutos apreciando o “panorama”, disfarçada pela meia luz que ali havia. Seu olhar singrava muito além daquela sacada e me peguei tentando adivinhar por onde aquela mente viajava , o que aquele coração ansiava e por que estava ali sozinho, longe das almas embriagadas que se esvaiam no salão... Então ele se mexeu.
Baixei os olhos tentando me esconder (como um gatuno flagrado na hora do furto) e mirei disfarçadamente suas mãos. Os dedos moviam-se sobre a mesa acompanhando o ritmo abafado que fugia pelas janelas, tocando um piano invisível com unhas estranhamente compridas. Afastei o olhar por impulso, porém, a curiosidade que me acompanha desde o dia em que nasci forçou-me a encará-lo. E, como constatei, ele encarava a mim.
Custei a definir a cor daquele olhar, era diferente de tudo o que já havia me mirado. Longe de ser frio, era um olhar penetrante que ele lançava, e quente. Tão quente que me dei conta de que seus olhos eram vermelhos, exatamente como  o efeito causado pelo flash em fotografias. Não sei definir a sensação que me possuiu naquele instante, mas tive  certeza de que a minha imagem o divertiu , pois ele sorriu para mim.
Achava que todos os sobressaltos já haviam me acometido naquela busca de ar fresco ,quando aquilo que deveria ser um simples sorriso descortinou-se numa saudação digna do Conde Drácula. A alvura do branco não amenizava a desproporção dos pequenos dentes sustentados por dois enormes e assombrosos caninos, que ameaçavam saborear o meu pescoço a qualquer momento. Sem tempo para um autógrafo fugi descabeladamente para dentro do caldeirão que fervilhava cantando: “Vou beijar-te agora não me leve a mal, hoje é carnaval...”
Por inconsistência de fatos não posso afirmar se testemunhei a fantasia mais original  de todos os carnavais que brinquei na minha vida,ou se paquerei pecaminosamente um legítimo conde das trevas.
Concedo aos leitores a liberdade de assinarem a dedução que lhes for mais cabível para esta história, mas dou-lhes minha palavra de que ela é tão verdadeira quanto o rio que troca de cores, e serviu de cenário naquela noite em que um vampiro sorriu para mim.

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