Com cisco no olho


 
Por muito tempo sofri a cada final de verão. De tal forma que o significado da palavra sofrimento foi descoberto por mim assim, no fim das férias. Por conta disto, desejei reverter o costume adotado pela minha família e por todas as famílias da minha cidade que possuíam casa na praia: fechá-las definitivamente no dia anterior ao início das aulas.
A fim de eternizar o turbilhão de emoções sentidas na estação mais quente do ano, acreditava que continuar morando na beira do mar manteria a magia dos dias que eram sempre ensolarados, mesmo quando chovia.
De tão pequena, não conseguia identificar de onde vinha o monstro que corroia meu estômago e nem por que ele aparecia, para devorar as minhas entranhas, no fim de todos os verões. Tentava apenas segurar, em vão, as lágrimas que teimavam em fofocar para minha mãe o que eu estava sentindo.
Certa vez, quando o verão - não contente em partir - levou meu adorado irmão mais velho para estudar bem longe de mim, as lágrimas não se contiveram e resolveram despencar, todas, aos borbotões. Enfiei-me embaixo da cama e só sai de lá depois de muito minha mãe me procurar e me arrastar pelo assoalho empoeirado. Quando ela quis saber por que eu estava chorando, disse que estava com cisco no olho.
Depois de ter visto meu irmão partir com sua mala na calçada, os verões nunca mais pararam de levar pessoas e momentos para longe de mim, assim que terminavam.
Faltam dedos para contar os amores que se foram. Para cada ano um amor diferente de uma cidade distante que eu jamais iria conhecer, a não ser pelo mapa ilustrado no Atlas, sobre o qual me debruçava na ânsia de que os trouxessem de volta.
Uma única crônica não é suficiente para contar as amizades que não resistiram ao inverno rigoroso e nunca mais voltaram a ser como eram; os parentes que  tornaram a ser distantes e nunca mais motivaram uma rodada de canastra ou de dorminhoco, valendo rolhadas; a frigideira que nunca mais viu graça em frigir bolinhos de chuva, mesmo quando fazia sol.
Os verões do passado também serviram para me ensinar, na prática, o significado de ilusão. Ainda pequena descobri que as coisas que a gente acha que durarão para sempre (de tão intensas) se acabam, fazendo-nos sofrer na mesma intensidade.
Assim, num coquetel de felicidade e lágrimas, prazer e dor, o verão me foi servido ano após ano. Até que a minha couraça emocional passou a ser como as asas do Bat Fino (quem se lembra do morcego super-herói?), de aço. O que, por muito tempo, me permitiu sobrevoar os verões sem mergulhar totalmente o coração e correr o risco de afogá-lo mais tarde, até agora.
Senhoras e senhores! Comunico que os adultos não estão imunes às desilusões “veranísticas”.
Não é que foi pega outra vez?! Mergulhei de corpo, alma e coração e me esqueci de lembrar que chega uma hora que é preciso colocar os pés no chão e se enrolar na toalha. Deparei-me, na plenitude da maturidade, com a mesma sensação de criança, ao ver minha mãe girar a chave e lacrar a casa da praia e da felicidade, até o próximo ano.
A temporada de verão termina encerrando um ciclo de convivência calorosa, alegre e bronzeada. Levando consigo os embalos das noites que se estendem até o despertar do primeiro raio de sol; as conversas desprotegidas sob o céu nu; a quentura das emoções desnudas; a alvura dos sorrisos libidinosos; a embriaguês permissiva das férias; a ilusão.
A magia de verão se foi e me deixou aqui, assim, com o maldito monstro (que não sei de onde vem) a devorar minhas entranhas, e com um enorme cisco no olho.
Com licença, preciso ir para debaixo da cama.

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Cartão de amor

 
Remexendo no fundo do guarda-roupa encontrei uma caixa antiga - que ganhei de presente há muito tempo num dos meus aniversários de guria- a qual elegi para ser a guardiã dos cartões românticos que fui recebendo ao longo da vida.
Ao abrir um e outro, eu li o amor. Na maioria deles um amor forte e inabalável se declarava no papel por letras distintas, me fazendo relembrar as emoções sentidas em cada um daqueles períodos vividos. Mas não pude mais senti-las. Ainda que se mantivessem em perfeito estado de conservação e que tivessem velado o amor de cada época, aqueles cartões bonitos não foram suficientes para mantê-lo vivo. Então, lembrei-me da minha mãe.
Cresci ouvindo-a dizer que amor, de fato, não existe. Custei a entender que o tempo havia conferido a ela o conhecimento prático sobre as emoções que, infelizmente, na maioria das vezes, não são tão poéticas quanto sugerem ser.
Depois de anos de casamento, cinco filhos e serviços domésticos gratuitos, a mulher que me gerou, descobriu que amar não é um verbo intransitivo a ser conjugado por toda vida, e achou por bem avisar a filha, antes que ela se surpreendesse lá fora.
Não precisaria nem dizer que - como todo filho que preza pelas próprias cabeçadas - não dei a devida importância às dicas de mamãe. Aliás, sequer perdi tempo me aprofundando no significado daquela frase que, num primeiro momento, pareceu-me superficialmente fria.
Amor não existe? Nem a pessoa que me pôs no mundo me faria crer num absurdo deste!
Até que algumas desilusões e confusões sentimentais chegaram, sem avisar, para passar uns tempos comigo.
Ô mãe, me explica, me ensina!
O amor não é uma fórmula exata - finalmente ela me viu sentada, com olhos e ouvidos atentos ao que tinha para falar – onde os dois serão, eternamente, o somatório de um mais um. Amor é múltiplo de atitudes e acontecimentos que, quando em consonância, elevam o coração. Do contrário, quando em desarmonia, podem causar o mal até zerar.
 Confesso que não foram exatamente estas palavras que ela usou, mas de maneira simples (não menos sábia) minha mãe apresentou-me, na prática, a outra face do amor que tende a ser teórico. E me fez ver que ele é um conjunto de coisas que quando deixam de acontecer ele deixa de existir. Por isto me lembrei dela ao reabrir a caixa de cartões apaixonados que recebi ao longo da vida.
O amor não é concreto como um cartão romântico. Num cartão escrevem-se palavras bonitas que poderão durar sim, por toda uma vida ou além dela. Num pedaço de papel brilhante os sentimentos tornam-se invioláveis e as juras tornam-se eternas. Surdo dentro da caixa, um cartão de amor é inatingível aos gritos e ofensas. Cego na escuridão em que é guardado, um cartão não vê a traição. Na impermeabilidade da emoção, um cartão não sente a dor da decepção. Um cartão não perde a calma, nem a compostura, portanto nunca colocará o ódio para fora junto com o amor. Um cartão de amor passa ileso pela primeira até a última crise. A menos que você tenha o ímpeto de rasgá-lo ou queimá-lo, ele sobreviverá a muitas vidas. Mas o amor não.
O amor é frágil. Suscetível aos vaivéns emocionais, ele perde o chão, cambaleia e cai. O amor perde a cor com a tristeza; amarela com a indiferença; se rasga com a agressão; se desmancha sob as lágrimas.
Ainda que você teime em conservá-lo pelo resto da vida, o amor não pode ser protegido por uma caixa bonita e muito menos sobrevive na escuridão do guarda-roupa. O amor precisa de luz e – como diria a minha mãe - quando ela se apaga ele deixa de existir.
 

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Quinto dos desapegados



Acho que enquanto Deus está preocupado em atender bem as pessoas, o Diabo se especializa em estratégias de marketing.
Perceba o quanto a notícia ruim bate em seus ouvidos minutos após ter acontecido, enquanto as boas, muitas vezes, você nem fica sabendo. Coisa ruim se alastra rápido e pega fácil. Gripe, conjuntivite, piolho, sertanejo universitário e funk estão aí para comprovar. Coisa ruim vira epidemia, moda, hit do momento.
Na última mesmo o capeta se superou. Pasme! A humanidade está cultuando o desapego.
 E não estou me referindo ao desprendimento da matéria, não. O povo está divulgando, curtindo e compartilhando o desapego entre as pessoas mesmo.
Redes sociais escancaram a campanha da vez, se relacionar sem se apegar.  Caras lindos, bombados (e abobados) ilustram avisos ridículos: “Não te apega. Eu não presto”.  Mulheres lindas, malhadas (e mal amadas) anunciam em seus murais: “Eu pego, mas não me apego”.
A palavra desapego ganhou peso, glamour, status. Pessoas enchem a boca, orgulhosas, para afirmar que praticam o desapego, assim como vão seis vezes por semana à academia.
Como assim?! Devo acreditar que é bacana pegar e ser pega, mas não me apegar?! Quer dizer que a minha matéria pode ser apalpada, usufruída, desfrutada, pois o desapego se restringe ao sentimento, à emoção, ao meu espírito?
Outro dia uma amiga me contou que o namorado, depois de quase um mês de sumiço, voltou cheio de amor para dar, mas quando ela perguntou quando iriam encontrar-se novamente, ele pulou feito um gato, eriçou os pelos e foi logo intimando “Bah! Não dá para gente praticar o desapego?” Minha amiga ficou pensando. E quando perguntei (abismada!) por que ela não mandou o bonitão para o quinto dos desapegados, confessou envergonhada que não quis parecer antiquada.
Socorro! As pessoas estão sendo abduzidas!  Uma mulher deve se sujeitar a ser usada como uma TV, um computador, um celular, um automóvel, quando o outro sentir vontade ou necessidade, só para ser moderninha? Calar o desejo de ser amada, desejada e respeitada todos os dias pela mesma pessoa, para não parecer retrógada? Ser pega como uma boneca inflável e depois esvaziar-se num canto muda de tristeza e murcha de amor? 
Minha amiga apaixonada pelo desapegado ficou confusa, seu amor tornou-se sobressalente de uma hora para outra. Um estepe que dificilmente se usa; um peso de papel enfeitando a mesa do escritório; um vaso vazio aguardando pelo próximo buquê; um jogo de jantar que nunca saiu da caixa; uma garrafa de vinho na adega de quem não bebe.
E agora, o que se faz com o amor na era do desapego? Quando a troca de olhares não passa de um convite para a pegação, o beijo é a aceitação explícita do tal convite, e o sexo mera necessidade fisiológica? Tudo feito sem expectativa.
Esperar uma ligação no dia seguinte? Não confesse isto nem ao seu cachorrinho, para não correr o risco de vê-lo rir em vez de latir.
Imagino que, depois da proposta “desapegadora” do suposto namorado, a minha amiga acabou descuidando do seu amor, abandonando-o ao pó e às traças, destino certo das coisas sem utilidade. Até desapegar-se totalmente. O que não significa que os dois não continuarão se pegando.
Entendeu a “ilogística” do processo do desapego?
Vai dizer, então, que isto não é trama do capeta? Eita! Marketeiro bom dos infernos!
Por sorte ou azar (ainda não estou bem certa), Deus me fez imune aos modismos superficiais e ao consumismo vazio. Caretona assumida, não pego, nem me deixo pegar, não entro em promoções, nem me liquido.
Sou do tempo da paixão, do sangue quente, do sonhar acordado, de esperar o dia seguinte cheio de mensagens e expectativas, do amar sobre todas as coisas. Sou irrecuperável! Não tem jeito, nem transfusão, eu me apego irremediavelmente.
Se houver algum sobrevivente da minha espécie, faça contato. Precisamos nos proteger. 

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