Agenda




A contagem regressiva do tempo anuncia que o ano está terminando e dezembro é o aceno da despedida, em contagem acelerada até o Natal.
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De 1 a 10 ainda dá para respirar, afinal ainda tenho mais 15 dias pela frente.
As aulas terminam ao mesmo tempo em que os amigos ocultos começam. É preciso comprar os presentes. Isto significa ter que enfrentar as lojas congestionadas (nesta época, mais cheias de vendedores do que de clientes). Melodias natalinas reverberam nos ambientes e se confundem com os alto-falantes dos carros que rodam nas ruas e me confundem. É hora de montar a árvore e os enfeites, pendurar a guirlanda na porta e encontrar o CD com músicas natalinas, entre as quais, a da Simone cantando “então é Natal...”.
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De 10 a 20 a coisa começa a complicar. Os convites de formatura vão se acumulando. Tenho que me multiplicar para poder estar presente em todas as solenidades e não fazer desfeita. Correr para as lojas e comprar presentes. Porta-retrato, chaveiro, agenda, caneta. Com tanta correria perco a criatividade. As confraternizações vão atropelando as noites. É tempo de deixar o aconchego do sofá (das noites calmas do inverno) para ir brindar com os amigos do trabalho, da aula, do grupo de estudo, das entidades, das associações... As luzes de Natal tomam conta da cidade e anunciam com brilhantismo que vão consumir minhas preciosas horas. Numa loja qualquer Simone canta “e o que você fez?...”.
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De 20 a 24 é o caos. Já não é possível caminhar. É preciso correr atrás do tempo tentando alcançá-lo, antes que ele acabe sem que eu tenha executado cada linha da agenda. Comprar presente para as crianças, para o pai das crianças, para os avós das crianças, os padrinhos das crianças, os amigos das crianças. Para os funcionários, o guarda, o jardineiro, o amigo secreto, a amiga explícita... Enquanto esbarro na multidão que resolveu sair de casa no mesmo dia em que eu para fazer as compras. Enquanto não encontro vaga para estacionar o carro. Enquanto o ponteiro do relógio gira mais rápido do que o velocímetro.
É preciso marcar cabeleireiro, manicure, depilação. Comprar os trajes da família para a ceia. Enquanto o Papai Noel sorri em todos os cantos, por todos os lados. Enquanto me arrependo por não ter deixado o carro em casa e seguido a pé. Simone canta no rádio “o ano termina...”.
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Dia 24. Na véspera já não me reconheço. Os pés chiam, a cabeça ferve; o corpo não se aguenta. Pensar na ceia, preparar a ceia. É preciso preparar o velhinho: colocar a roupa, ajustar a barba, bigode, maçãs rosadas, sobrancelhas brancas, treinar o “oh-oh-oh!”, etiquetar os presentes, encher o saco (do Papai Noel), verificar o forno, o gelo, o cabelo, a máquina fotográfica, o batom. Atender a campainha! Receber o bom velhinho... Enquanto Simone canta ao fundo “e nasce outra vez...”.
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Dia 25. No dia, não reconheço a casa. Os papéis rasgados dormindo no chão. As velas desmaiadas sobre a toalha. As bebidas esquecidas num canto, nos copos. As louças empilhadas (não esquecidas, largadas). Os brinquedos novos, enfeitando onde antes havia os enfeites. Os enfeites que perderam a graça. A árvore que perdeu o sentido. O espelho que reflete na íntegra a imagem dos meus 359 dias corridos, de cansaço. Simone (que nesta hora já possuiu o meu cérebro) lembra “então é Natal...”.

(Crônica do meu livro Na sala de espera.)

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