Pra não dizer que não falei da morte



NÃO gostamos quando ela ronda. Desejamos ardentemente que ela nunca chegue perto de nós ou dos nossos. Por isso, passamos a maior parte da vida fingindo que ela não existe. Torcendo que, ao ignorá-la, ela tenha nos esquecido ou no mínimo nos deixado por último em sua infalível lista.
Porém, como devíamos esperar, ela chega.
E apresenta-se da forma que mais tememos e aparentemente que mais lhe agrada: sem avisar.
Sem pedir licença, sem dirigir condolências, sem apresentações.
– Com licença senhor ou senhora, eu sou a Morte e vim lhe avisar que chegou a hora de partir comigo.
Sem direito a argumentação.
– Mas como agora? Justo agora que eu iria começar um projeto novo. Agora que eu iria fazer tudo que ainda não fiz. Agora que tenho tanto a dizer, a reparar, a resgatar. Agora é cedo demais para mim!
Sem segunda chance.
– Sinto muito! Como todos sabem, para mim não existe hora, nem tempo certo ou errado. A mim só resta cumprir o meu papel, quando o tempo tiver esgotado.
Sem perdão.
– Sinto muito! Admito que andei me excedendo, me descuidando, ignorando... Mas isto é hábito de todos os mortais. Achamos que nunca virá, ou, pela lógica cronológica, que só virá nos buscar quando a chamarmos.
Sem explicação.
– Olha, estou levando fulano de tal, mas ele vai morar logo ali no andar de cima.
Sem saber pra onde.
- Mas vocês vão poder continuar se vendo e se falando. Basta trocarem os endereços e ligarem a webcam. Ele vai poder continuar escrevendo para você via e-mail. Também tem o chat que interliga todos os moradores lá de cima com os que continuam morando aqui embaixo. O bate-papo funciona 24 horas. Mas não tenha pressa em mudar pra lá também, pois a decisão não é sua.
O carrasco sem rosto e sem voz simplesmente executa a sentença que a todos foi dada, cumprindo a única certeza que temos, desde o momento em que a vida se fez em nós. A qual nós nunca aceitamos e para qual nunca nos preparamos; morrer.
E quando ela sopra com o hálito frio da sua presença nos tímpanos quentes da vida, nos encontra assim: desprevenidos, desarmados, indignados, estraçalhados, desesperados...
Perdidos nesta estranha mania de querer apenas viver.

(do meu livro Na sala de espera.)

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